Após concluir os estudos em Filosofia no Colégio San José em San Miguel, em 1963, Jorge Mario Bergoglio, o Papa Francisco, foi professor de literatura e psicologia no Colégio Imaculada Conceição, em Santa Fé, na Argentina, entre os anos 1964 a 1965.
Talvez isso explique o fato de ter sido o primeiro pontífice a valorizar textos literários, incluindo escritores sem religião, algo incomum entre os papas anteriores. Outro aspecto inusitado de sua trajetória diz respeito a sua aproximação com a poesia.
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Em 2025, quando Francisco estava internado, foi lançado o livro “Viva la poesia” (ainda sem edição em português), que reúne seus escritos sobre literatura. Nessa obra, organizada pelo padre Antonio Spadaro, há um manuscrito inédito que reforça a importância de recuperar o gosto pela literatura na vida cotidiana e na formação acadêmica. Além disso, é possível conhecer algumas de suas influências literárias – Virgílio, Dante Alighieri, Fiódor Dostoiévski, Jorge Luis Borges, entre outros.

Em 17 de julho de 2024, a sua “Carta sobre o papel da literatura na educação” foi divulgada. Inicialmente, era direcionada à formação sacerdotal, no entanto, acabou sendo estendida também para diferentes públicos. Como o próprio autor evidencia no início do texto: “[…] o que se segue pode ser dito, de modo semelhante, em relação à formação de todos os agentes pastorais e de qualquer cristão. Refiro-me ao valor da leitura de romances e poemas no caminho do amadurecimento pessoal.”
Na carta, dividida em 44 tópicos, o papa lembra sua carreira docente, destaca as leituras de obras, cita autores clássicos e, em especial, enumera uma série de reflexões acerca do ensino de literatura. Selecionamos os principais trechos. Confira:
“[…] Entre 1964 e 1965, quando tinha 28 anos, fui professor de literatura numa escola jesuíta, em Santa Fé. Ensinava aos dois últimos anos do liceu e tinha de fazer com que os meus alunos estudassem El Cid. Mas eles não gostavam. Pediam para ler García Lorca. Por isso, decidi: em casa, estudariam El Cid, e, durante as aulas, abordaria os autores de que aqueles jovens mais gostavam. Claro que eles queriam ler obras literárias contemporâneas; porém, à medida que fossem lendo o que os atraía no momento, iriam adquirindo em geral o gosto pela literatura, pela poesia, e depois passariam a outros autores. Afinal, o coração procura mais e, na literatura, cada um encontra o seu próprio caminho [2]. Por exemplo, eu gosto muito dos artistas das tragédias, porque todos podemos sentir as suas obras como nossas, como a expressão dos nossos próprios dramas. No fundo, ao chorar o destino das personagens, estamos a chorar por nós mesmos: o nosso vazio, as nossas falhas, a nossa solidão. Naturalmente, não estou a pedir para fazerdes as mesmas leituras que eu fiz. Cada um encontrará os livros que falarão à sua própria vida e que se tornarão verdadeiros companheiros de viagem. Não há nada mais contraproducente do que ler por obrigação, fazendo um esforço considerável só porque alguém disse que é essencial. Não, devemos selecionar as nossas leituras com abertura, surpresa, flexibilidade, orientação, mas também com sinceridade, tentando encontrar o que precisamos em cada momento da vida.”
“De um ponto de vista pragmático, muitos cientistas afirmam que o hábito de ler produz muitos efeitos positivos na vida de uma pessoa: ajuda-a a adquirir um vocabulário mais vasto e, consequentemente, a desenvolver vários aspectos da sua inteligência; estimula também a imaginação e a criatividade; simultaneamente, permite que as pessoas aprendam a exprimir as suas narrativas de uma forma mais rica; melhora também a capacidade de concentração, reduz os níveis de déficit cognitivo e acalma o stress e a ansiedade. Mais ainda: prepara-nos para compreender e, assim, enfrentar as várias situações que podem surgir na vida. Ao ler, mergulhamos nas personagens, nas preocupações, nos dramas, nos perigos, nos medos de pessoas que acabaram por ultrapassar os desafios da vida, ou talvez, durante a leitura, demos às personagens conselhos que mais tarde nos servirão a nós mesmos.”
“Quando o meu pensamento se volta para a literatura, lembro-me do que o grande escritor argentino Jorge Luís Borges [Cf. J.L. Borges, Oral (Buenos Aires 1979), 22] costumava dizer aos seus alunos: o mais importante é ler, entrar em contacto direto com a literatura, mergulhar no texto vivo que se tem diante de si, mais do que fixar-se em ideias e comentários críticos. E Borges explicava este pensamento aos seus alunos, dizendo-lhes que, talvez, no início compreendessem pouco do que estavam a ler, mas em todo o caso teriam escutado “a voz de alguém”. Aqui está uma definição de literatura que tanto me agrada: ouvir a voz de alguém. Não esqueçamos o quanto é perigoso deixar de ouvir a voz do outro que nos interpela! Caímos imediatamente no isolamento, entramos numa espécie de surdez “espiritual”, que também afeta negativamente a nossa relação conosco próprios e com Deus, por mais teologia ou psicologia que tenhamos conseguido estudar.”
“No que diz respeito à forma do discurso, acontece o seguinte: ao lermos um texto literário, colocamo-nos na condição de «ver com os olhos dos outros» [C.S. Lewis, Lettori e letture, op. cit., 165.], adquirindo uma amplitude de perspectiva que alarga a nossa humanidade. Isto ativa em nós o poder empático da imaginação, que é um veículo fundamental para essa capacidade de identificação com o ponto de vista, a condição, o sentimento dos outros, sem a qual não há solidariedade, partilha, compaixão, misericórdia. Ao ler, descobrimos que o que sentimos não é só nosso, é universal, e, por isso, até a pessoa mais abandonada não se sente só.”
“Quando se lê uma história, graças à visão do autor, cada um imagina, à sua maneira, o choro de uma jovem abandonada, a idosa que cobre o corpo do neto adormecido, a paixão de um pequeno empreendedor que tenta ir para diante apesar das dificuldades, a humilhação de alguém que se sente criticado por todos, o rapaz que encontra no sonho a única saída para a dor de uma vida miserável e violenta. À medida que sentimos vestígios do nosso mundo interior no meio dessas histórias, tornamo-nos mais sensíveis às experiências dos outros, saímos de nós próprios para entrar nas suas profundezas, conseguimos compreender um pouco mais as suas lutas e desejos, vemos a realidade com os seus olhos e acabamos por nos tornar companheiros de viagem. Assim, mergulhamos na existência concreta e interior do vendedor de fruta, da prostituta, da criança que cresce sem pais, da mulher do pedreiro, da idosa que ainda acredita que vai encontrar o seu príncipe. E podemos fazê-lo com empatia e, por vezes, com tolerância e compreensão.”
“Além disso, a literatura não é relativista porque não nos despoja de critérios de valor. A representação simbólica do bem e do mal, do verdadeiro e do falso, como dimensões que na literatura tomam a forma de existências individuais e de acontecimentos históricos coletivos, não neutraliza o juízo moral, mas impede-o de se tornar cego ou superficialmente condenatório. Pergunta-nos Jesus: «Porque reparas no argueiro que está na vista do teu irmão, e não vês a trave que está na tua vista?» (Mt 7, 3).”
“Na violência, na limitação ou na fragilidade dos outros, temos a possibilidade de refletir melhor sobre a nossa. Ao dar ao leitor uma visão alargada da riqueza e da miséria da experiência humana, a literatura educa o seu olhar para a lentidão da compreensão, para a humildade da não simplificação, para a mansidão de não pretender controlar a realidade e a condição humana através do julgamento. Este é certamente necessário, mas nunca se deve esquecer o seu alcance limitado: com efeito, jamais deve traduzir-se na sentença de morte, no cancelamento, na supressão da humanidade em prol de uma árida totalização da lei.”
Leia a carta na íntegra AQUI!