O “Viver apesar de” em O tigre e outros contos: Cesar Rossilho e Marcos Pamplona

“Viver apesar de” é um conceito que particularmente me toca. Clarice Lispector tem algo nesse sentido entre suas famosas frases e Virgínia Woolf explora profundamente a ideia em Mrs. Dalloway. Viver apesar da guerra. Apesar das mortes. Apesar da dor. 

É nesse “viver apesar de” que Cesar Rossilho e o escritor Marcos Pamplona constroem o pilar que sustenta as histórias de O tigre e outros contos, publicado em 2024, pela Kotter Editorial. 

São sete contos que se entrelaçam e nos quais Pamplona esculpe através da ficção o passado de Cesar, um empresário que sonhava em ser artista. Contratado inicialmente como ghost-writer, um escritor-fantasma que escreve para outras pessoas sem ter o crédito pelo texto, Pamplona encontrou-se virtualmente com Cesar, que deu informações chave sobre a própria vida, e a partir daí reconstruiu as experiências desse personagem que está vivo e é real, e ficcional ao mesmo tempo. O resultado é uma inusitada “autoficção” escrita por um ghost-writer que após decisão do próprio Cesar revela-se, nascendo assim a autoria “Cesar Rossilho por Marcos Pamplona”. 

O principal mote, o acontecimento a partir do qual a narrativa se desenrola, é o abuso sexual sofrido por Cesar ainda criança. É no trauma dessa violência e em como ela se torna impronunciável que o primeiro conto, O menino submerso, se debruça. 

Sim, somos recebidos com esse soco no estômago. Acompanhamos a dor física e emocional dessa memória, pois a narrativa vai e volta no tempo, explorando as sensações, as emoções e os gatilhos. Temos um Cesar aposentado que ainda processa, ou, melhor, tenta processar, a violência sofrida pelo Cesar de 6 anos de idade. 

“Então, quando já ia esquecendo o transe inexplicável no apartamento do irmão, tudo vem à tona, um borrão de imagens velozmente sobrepostas: os garotos em cima do muro, o objeto, o filho da puta que fez aquilo, a súbita humilhação, a dor (…) Sessenta anos depois, a cena revoltante, grotesca, com seu imenso potencial destruidor, emerge da memória.”

E exatamente por se tratar de uma memória, os detalhes são imprecisos, há lacunas, confusão, mas estão lá o desamparo, a revolta, a impotência e a culpa, ah, a culpa. A culpa que se derrama para outros contos. 

É ela que serve de catapulta para os outros dois eventos que Cesar determinou como centrais da sua vida: o fracasso como jogador de futebol profissional, tema explorado no segundo conto, O sonho perdido; e o sofrimento diante do nascimento do neto autista, objeto da terceira história, Água pura.

Em O sonho perdido, um Cesar adolescente vive a intensidade típica dessa fase da vida, na qual amor e desespero caminham juntos. Porém, ele se sente preso, encolhido em uma gaiola, enquanto a vergonha do corpo e a questão da própria masculinidade diante da violência sofrida na infância, o leva a sabotar não apenas o sonho de ser jogador de futebol, mas também as próprias relações pessoais que ruem frente à insegurança e à raiva.

Já em Água pura, a sensação é de ter tomado uma rasteira da vida, uma vida já com tantos percalços e com tantas supressões e concessões em prol de uma suposta “normalidade” que sempre lhe foi negada diante do trauma. Ele se pergunta se estaria sendo punido, se já não havia sido punido o bastante. Há uma luta interna repleta de autocompaixão e despeito diante do nascimento de um neto autista e com o qual ele, na verdade, não conseguia, não sabia se comunicar.

Era tudo tão lastimável, tão triste…Uma água escura e fria se agitava dentro dele, e os respingos caíram inutilmente na realidade ensolarada, indiferente. Seu drama não fazia a menor diferença para o grande moinho insensível do tempo…

Contudo, há de se viver apesar e, mesmo repleto de culpa e raiva, Cesar revela uma determinação em se letrar “nas coisas do coração”, uma lição de neto para avô. 

Ainda nesse terceiro conto, que encerra, por assim dizer, os três grandes atos da vida de Cesar Rossilho, Pamplona adiciona um elemento que acompanhará as demais histórias: a autoconsciência adquirida por Cesar após o abandono do álcool, que lhe serviu de muleta e refúgio por décadas.

Então lembrou que há anos tinha parado de beber. Isso era como aquelas pessoas que sentiam coceira numa perna amputada. O álcool era a perna, ainda lhe dava coceira, ainda o provocava a fugir da lucidez. Não era para menos: o preço da sobriedade era ter plena consciência do peso da vida.”

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Do quarto conto em diante estamos mais no presente, ainda que seja impossível desviar do passado e toda sua amargura, tristeza, solidão e autopiedade. Com a aposentadoria, há uma retomada do tempo e do ócio, ou seja, não foi apenas o abandono do álcool, mas também da carga de trabalho que permitiu a Cesar uma maior lucidez. 

Em Um fruto simples e exato, há o reconhecimento do amor no simples, na rotina, no mamãozinho deixado à mesa do café da manhã pela esposa, o que desencadeia uma reflexão: ainda dava tempo de dar as boas-vindas a si mesmo? 

Afinal, ele se sentia um estrangeiro em si mesmo, essa é a sensação explorada no conto seguinte, Afirmação do Mar. A tomada de consciência. O choque entre o que ele queria ter sido e o que foi e chegar à conclusão de ter feito o que foi possível. 

Olhou ao redor, viu a esposa, os filhos, o neto. Ainda dava tempo de dar as boas-vindas a si mesmo? 

Adorando sem entender é o penúltimo conto e no qual Pamplona percorre a relação com os filhos, que talvez tivessem ouvido menos “nãos” do que deveriam diante do NÃO do pai ignorado pelo seu agressor aos 6 anos de idade. No entanto, estavam lá. Ainda estavam lá: “Ele e seus filhos, ele e aquelas pessoas resistentes que choviam e sorriam, ainda e sempre.”

Fechando os contos, O tigre. Uma espécie de balanço diante da contemplação da finitude através da metáfora da morte como um tigre que está sempre à espreita, sempre à espera do momento certo para dar o bote. Uma companhia assustadora, mas igualmente reconfortante. Não seria o primeiro, nem o último a ser abocanhado pela fera.

Ao terminar a leitura de O tigre e outros contos fiquei com a sensação de ter lido um livro bastante corajoso, não apenas pelas confissões e pela intimidade com as quais são contadas, mas também por borrar por completo a incessante busca do leitor pelo que é verdade ou não na autoficção. A repercussão do fato, do acontecimento dentro do personagem, é o que importa na narração do Pamplona. Sabemos que as histórias têm como base as experiências vividas por Cesar, mas o registro delas, a forma, vem de uma outra pessoa, Marcos Pamplona, que como disse no início dessa resenha, esculpe o passado em ficção, invocando em certa medida a coletividade da arte da escrita. 

Cesar Rossilho nasceu em 1957, em Tupã (São Paulo). Mora em Curitiba, onde tem uma empresa. Escreveu seu primeiro livro aos 22 anos, mas, devido ao peso das confissões nele contidas, decidiu esconder a obra depois de publicada. Cesar também é letrista, tendo escrito dezenas de canções em parceria com seu filho, o músico, cantor e compositor Troy Rossilho. Ao lado de sua companheira e amiga há 47 anos, Carmen Dolores, é pai de Faena e Troy, avô de Enzo, Pedro e Lucas. Dividiu sua vida entre a família, a atividade empresarial e o sonho de ser artista.

Marcos Pamplona nasceu em Curitiba, em 1964. Cursou Letras na Universidade Federal do Paraná. Trabalhou até 2004 como roteirista e redator publicitário, tendo conquistado diversos prêmios internacionais, entre eles o Leão de Cannes e o Grand Prix no New York Film Festival. A partir de 2005 dedicou-se exclusivamente à literatura. É escritor e editor. Seus poemas foram selecionados em três edições do Prêmio Off Flip de Literatura, integrando as coletâneas de 2006, 2008 e 2010. Publicou o livro de poemas Tranverso ( Kotter Editorial, 2016), o livro de crônicas Ninguém nos Salvará de Nós (Kotter, 2021), e O Anjo da Incerteza, também de crônicas (Arte& Letra, 2023). Desde 2019 vive em Lisboa, onde, além de exercer a atividade de editor, escreve crônicas para o Jornal Plural, nascidas de suas andanças pelas terras portuguesas.

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