Texto de cobertura do Festival de Sundance 2025
Os Estados Unidos possui casos policiais muito simbólicos de sua sempre presente tensão racial, não somente das situações onde policiais assassinam pessoas negras, como George Floyd ou Breonna Taylor, mas também entre civis, como é o caso abordado no documentário The Perfect Neighbor, de Geeta Gandbhir. A obra retrata os eventos que culminaram na morte de Ajike Owens, uma mulher negra, pelas mãos da sua vizinha, Susan Lorincz, branca.
A obra adota uma perspectiva privilegiada, por assim dizer, da situação. Acompanhamos o desenrolar do caso inteiramente pelas câmeras corporais dos policiais que, ao longo dos anos, lidaram com as tensões criadas pelo comportamento de Lorincz com seus vizinhos.
Há um quê de ironia no título, The Perfect Neighbor, “A Vizinha Perfeita”, descrição que Lorincz dá a si mesma para um dos inúmeros policiais que ela chamou contra as crianças da vizinhança ao longo dos anos. Sua grande queixa? Que as crianças do bairro estavam brincando próximas à sua propriedade. Como crianças, eram barulhentas, nada mais comum.
Pesa nesses momentos o contraste entre os relatos. Lorincz pinta seus vizinhos – a grande maioria negros – como bárbaros, que a ameaçam e a agridem constantemente, enquanto ela mesma se porta com grande fragilidade diante dos oficiais, sempre a vítima, nunca a instigadora. Já os outros moradores apontam o constante racismo e agressividade da senhora, além dos exageros: uma placa que ela alega ter sido atirada contra ela foi meramente retirada, agressões físicas se revelam falsas.
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Gandbhir adota uma postura pouco intervencionista com o material, que é exposto de forma cronológica, com breves interlúdios comentando a tragédia futura. Há mérito nisso, fornecendo uma visão um tanto ampla da questão, mas também há problematizações a serem feitas de momentos de The Perfect Neighbor. Um filme é feito tanto daquilo que está na tela quanto do que não está, e no gênero documental isso é ainda mais relevante, a imagem de quem está na frente das lentes pode ser extremamente frágil.
Usarei como o exemplo o documentário Bem-Vindo à Chechênia, sobre perseguição à pessoas LGBTQIA+, onde uma das cenas envolve a tentativa de suicidio de um ativista, momento que é tratado como se estivéssemos assistindo um jornal sensacionalista, buscando o choque: close nos pulsos cortados, nas gazes ensanguentadas.
The Perfect Neighbor não busca o choque, mas sim uma emoção mais dramática, algo que as imagens até então não permitiram. Após a morte de Ajike – cujo corpo desfalecido vemos em cena – há uma longa cena onde o ex-marido precisa contar a notícia para os filhos. Um momento delicado, absolutamente íntimo, onde uma câmera não pertence. A gravação original não foi feita para os olhos públicos, o policial tinha pouca escolha a não ser se aproximar de uma criança aos prantos, mas Gandbhir tinha a escolha de deixar esse momento privado, não o fez, e as lágrimas do filho de Ajike se tornam uma espécie de “clímax” da trama, que não precisava de tal coisa.
Essa decisão, somada com a conclusão que busca tirar uma mensagem esperançosa da situação, retiram um pouco do impacto de The Perfect Neighbor, pois soam como gestos para tornar o dispositivo narrativo, seco e frio e, assim, mais palatável. Um contrassenso diante do material, cuja força está exatamente nesse aspecto analítico das imagens, um confronto direto com uma situação trágica onde nada se aprendeu, vide a situação atual dos Estados Unidos. Não há espaço para mensagens motivacionais nesse contexto.