Em uma das cenas de Conclave, o cardeal Lawrence interpretado por Ralph Fiennes acha uma tartaruga andando dentro do Vaticano. Após assistir ao filme, não é possível dizer outra coisa: aquela tartaruga é a alegoria perfeita do que representa a igreja católica atualmente. Em um mundo que se acelera cada vez mais, tendo inclusive alguns filósofos que consideram que o tempo acelerou tanto que parou de se movimentar, Conclave retrata uma igreja que, quando muito, está parada em dilemas do começo do século XX, incluindo pequenas atualizações pioradas, do mundo atual.
Começamos a obra dirigida por Edward Berger, o mesmo diretor de “Nada de Novo no Front” (2022), com a cena de um Papa que acabou de morrer. O Cardeal Lawrence é encarregado de executar o processo secretíssimo da escolha do novo sumo pontífice, embora ele mesmo venha duvidando de sua fé e de sua carreira dentro da igreja.
Diante da missão legada a ele pelo Papa, o cardeal precisa conduzir a escolha do novo líder da Igreja Católica perante forças políticas distintas: Tedesco, um cardeal de extrema direita vindo de Veneza; Aldo Bellini, um progressista a favor dos direitos da mulher que se recusa a se candidatar; e um estranho candidato de última hora, o cardeal Benitz, de Kabul, que trabalhou em áreas de guerra e possui uma visão crítica do trabalho do Vaticano. Para completar, precisamos lidar com uma série de escândalos de ordem pessoal que atravessam muitos dos possíveis eleitos.
É possível dizer que o melhor do filme está na fusão de gêneros proposta por Berger. O filme se coloca estranhamente numa espécie de lógica de filme de tribunal, em que todos estamos diante do banco dos réus tendo suas histórias esmiuçadas diante dos outros, com o thriller de uma história envolvida em mistérios que se aceleram pela descoberta final.
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A direção também atua de forma a construir simultaneamente dois ambientes que se alternam: os espaços públicos onde vemos os rituais e as cenas grandiosas, tal como imaginamos que a eleição de um Papa é na realidade, com os espaços privados, os quartos à meia luz, os cantos das escadas e suas janelas e as quinas dos corredores, quase todos tratados com uma luz no melhor estilo chiaroscuro barroco em que se fundem um exterior iluminado com um interior de sombras.
Provavelmente, o filme será acusado de ser blasfemo e não será nenhuma surpresa, mas a acusação não possui nenhuma validade, afinal, blasfemar, na acepção da palavra, significa “ofender o sagrado” e, como sabemos, não há nada de sagrado dos meandros políticos das religiões. Eu diria que este é um filme até pueril, ingênuo, que poderia ter sido feito por Steven Spielberg com sua visão cristã no melhor sentido do termo: um filme de quem acredita na bondade do Papa e das boas pessoas que estão ali dentro da igreja realmente buscando servir a Deus.
É um pouco surreal, no entanto, perceber que um filme que seria conservador, no sentido de que busca “conservar” os bons ensinamentos dados por Cristo, se torna hoje quase um revolucionário grito blasfemo diante de um mundo em que uma extrema-direita acusa imigrantes muçulmanos de quererem dominar o mundo e atacar as tradições ocidentais. Atacar a velhacaria dos velhos cardeais políticos do Vaticano em defesa da boa fé da igreja é um gesto progressista, por incrível que pareça.
De qualquer forma, Conclave é um filme de grande força para promover uma série de discussões contemporâneas, algumas que calei aqui para não dar o principal spoiler do filme. Neste sentido, Conclave aponta sim para frente, para uma igreja que busca um futuro com menos desigualdade e mais diversidade. Pois o mundo em que vivemos é este: precisamos ser mais Cristo e menos cristãos, porque os cristãos estão andando para trás enquanto Cristo está lá na frente, na utopia que a gente não pode abandonar.