A obra do escritor Oswald de Andrade passa pela vida do ator Renato Borghi. Quando ele protagonizou “O Rei da Vela”, em 1967, um marco do teatro brasileiro, a peça já tinha sido escrita há mais de 30 anos. Mas essa fenda temporal ainda serve como passagem secreta para que os dois adentrem o mundo um do outro.
Assim, o espetáculo “Alegria é a prova dos nove”, em cartaz no Sesc Pompeia, em São Paulo, inscreve a poesia do modernista em vários momentos da cultura do Brasil para que a obra dele ressoe não como um eco, mas como uma sirene: precisamos lembrar do que passou para enfrentar o que virá. Para isso, a direção de Johana Albuquerque eleva os decibéis das artes plásticas, da música, do canto e vídeo, criando a trilha da viagem imaginária de Oswald de Andrade pelo tempo.
Como espectador de si mesmo, o escritor se integrava à arte, era um artista ao mesmo tempo em que era a obra, fervendo poesia, boemia e diversão em um caldeirão filosófico tipicamente brasileiro. No espetáculo, Oswald se olha, se reflete e, sobretudo, se engole como manda o “Manifesto Antropofágico”, documento histórico importante para compreender o calor daquela era em que a identidade do Brasil esgarçava sua independência intelectual. O Manifesto molda uma das cenas mais especiais de “Alegria é a prova dos nove”, que também usa “Memórias Sentimentais de João Miramar” (1924), “O Homem e o Cavalo” (1934), “O Rei da Vela” (1937) entre outros fragmentos oswaldianos.
Em cena, três músicos acompanham os atores Renato Borghi, Elcio Nogueira Seixas, Regina França e Fernanda D’umbra, todos claramente à vontade. Assistir a interpretação de “Balada do Esplanada”, melodia de Cazuza para poema de Oswald, por exemplo, foi um desses momentos onde o público torna-se espectador de si mesmo, rompendo a lógica e a importância das coisas terem um sentido exato somente para apresentar o absurdo da vida.
Aos 88 anos, Hermeto Pascoal vence o Grammy Latino 2024 na categoria Melhor Álbum de Jazz. Ouça aqui!
Tanto que a dramaturgia de “Alegria é a prova dos nove” não deixa nada fora: Beckett, Brecht, Chacrinha, os negacionistas, os golpistas, Xuxa e até o “Adolfinho” sobem ao palco para dar porrada, tirar o público desse estado anestésico que fez cenas como cantar para um pneu às vésperas de um atentado terrorista, como vimos em dezembro de 2022, perderem efeito dia após dia.
O grupo Teatro Promíscuo revira a cova de Oswald de Andrade para lembrar o país que a alegria não deve ser essa droga de efeito passageiro, mas uma injeção de cavalo. Cadê a indignação, a revolta, o desbunde, a ironia e a galhofa, ingredientes de qualquer receita cultural feita na época em que o autor viveu?
Se a trilha sonora de William Guedes serve para contextualizar as décadas por onde o balão mágico de Oswald de Andrade sobrevoa, a videografia amplifica os destinos em que todos nós podemos chegar – bons ou ruins – em um misto de “aqui e agora” e “aqui e ontem”. É um trabalho muito bem feito, cercado pela luz de Wagner Pinto. A cenografia se inspira em artistas como Helio Oiticica, embalando toda produção nessa cápsula temporal.
Não por acaso, já no final quando as coisas estão deslocadas de propósito, aparece uma esperança. No palco, Renato e Oswald tornam-se um só. E a encenação honra o legado dos dois em um ritual antropofágico quando o elenco contorna o ator, tal qual uma tribo canibal, pronto a devorá-lo. O caldeirão, que assumiu formas diferentes ao longo da peça, como navio, balão e uma cabine de rádio, ferve a história do país.
Mas por 2h20, aquela passagem secreta entre os mundos de Renato Borghi e Oswald de Andrade ficou de portas abertas. Deu pra ver o ator, de 87 anos, e escritor de 134, como vieram ao mundo: artistas. Não é por acaso que, espiando da coxia, um dia José Celso Martinez Corrêa quis saber: “que ator é esse que guarda o tempo vivo em seu corpo e somente cresce e nunca vira múmia?”
FICHA TÉCNICA:
Textos de: Oswald de Andrade
Curadoria de pesquisa: Gênese Andrade
Leitura da obra: Johana Albuquerque, Renato Borghi, Elcio Nogueira Seixas e Regina França
Dramaturgia: Johana Albuquerque e Elcio Nogueira Seixas, em “processo colaborativo” com Renato Borghi, Regina França, Fernanda D’Umbra, Pedro Birenbaum, William Guedes, Nath Calan e Fernanda Zancopé
Elenco: Renato Borghi, Elcio Nogueira Seixas, Regina França e Fernanda D’Umbra
Músicos: Pedro Birenbaum (piano), Nath Calan (percussão e bateria) e William Guedes (cordas)
Direção de arte e cenografia: Simone Mina
Assistência de direção de arte: Rick Nagash e Tati Puglia
Assistência de cenografia: Vinicius Cardoso
Direção de palco e cenotécnico: Márcio Zunhiga – Espirro
Contrarregragem: Diego Dac
Figurinos: Carolina Casarin
Assistência de figurino: Camila Callas
Aderecista: Renata Sandoval
Assistência de adereços: Lais Damato
Costureira: Judite de Lima
Visagismo: Leopoldo Pacheco
Assessoria de teatro de bonecos: Luiz André Cherubini
Desenho de luz: Wagner Pinto
Produção de luz: Carina Tavares
Assistência de luz: Gabriel Greghi
Operação de luz: Júlio Greghi, Vinícius Requena e Lucas Giovannini
Videografia: Vic von Poser
Operação de projeção: Igor Marotti, Tomé Souza e Vic von Poser
Operação de vídeo ao vivo: André Voulgaris
Assistência de vídeo: Mayhara Ribeiro
Ponto: Vanderlei Bernardino
Trilha sonora e direção musical: William Guedes
Desenho de som e operação: Igor Sousa
Operação de sonoplastia: Dener Brito
Direção de movimento: Renata Melo
Camareira: Maria das Graças
Design gráfico: Werner Schulz
Gerenciamento de mídias sociais: Fernanda Fernandes
Assessoria de imprensa: Adriana Monteiro – Ofício das Letras
Fotografia: Gal Oppido
Direção de produção: Lukas Cordeiro
Assistência de produção: Tati Puglia
Direção: Johana Albuquerque
Assistência de direção e dramaturgia: Fernanda Zancopé
Coordenação Geral: Teatro Promíscuo
Idealização: Elcio Nogueira Seixas e Regina França
Realização: PROAC SP e Sesc SP