Um conto de Tolstói e a outra face do cânone russo

 Em uma sociedade capitalista/ neoliberal, a qual consome todos os segundos de 24h da rotina do indivíduo, é raro encontrar espaço no dia para ler um livro com oitocentas ou mais páginas, mais conhecidos como “tijolões”. É possível também  apontar outros fatores. Estamos a todo momento dividindo nossa atenção com as telas, o que pode dificultar o processo de leitura de longas narrativas. No meio editorial, os livros finos estão ganhando mais espaços, enquanto a venda de calhamaços está decaindo. Talvez seja uma tendência da  geração TikTok, em que tudo precisa estar demasiadamente simplificado e aglutinado. Neste cenário de narrativas mais sucintas, temos os calhamaços da chamada Era de ouro da Literatura Russa, do século XIX, que, consagraram-se como clássicos da Literatura Ocidental. Os dois autores mais conhecidos desse período e que escreveram obras extensas foram Dostoiévski e Tolstói. Pretendo, neste texto, por meio de Depois do baile, um conto de Tolstoi, mostrar a outra face do cânone russo. O mesmo autor que escreveu Guerra e Paz e Anna Kariênina dedicou-se aos escritos de novelas e contos.

Leia também: Felicidade Conjugal e os estágios do amor em Tolstói.

  O conto foi escrito em 1903 sob o contexto da Rússia Czarista, regime o qual já estava em decadência. O clima político e social estava em erupção e aconteciam muitas revoltas populares reivindicando o fim do Czarismo, em outras palavras, a sociedade estava ensaiando para o que mais tarde seria a Revolução Russa. A nobreza, como sempre, tentava conter as manifestações por meio da violência e manter, a todo custo, seus privilégios e o sistema monárquico absolutista. Tolstói, nesse contexto, elabora uma crítica ao autoritarismo do governo Czarista e reflete acerca da repressão sofrida pelas camadas populares. Para isso, o autor já inicia o conto com um questionamento: Somos frutos do meio no qual estamos inseridos? Ou as circunstâncias são determinantes?

O personagem Ivan Vassílievitch, em uma reunião de amigos, discorda da maioria presente. Para ele, não somos frutos do meio, na verdade, um acontecimento pode mudar o ser humano e ele possui um exemplo da própria vida para relatar. Ivan conta que, na juventude, foi à um baile aristocrático, extremamente elegante e pomposo. Na festa, ele apaixonou-se perdidamente por Varenka, filha de um militar. Passou horas dançando com a moça. Em determinado momento, após pedir licença ao rapaz, o pai da jovem começa a dançar com a filha. O encanto que outrora Ivan sentia por Varenka é transferido para o pai. A dança, protagonizada por pai e filha, está sob uma aura romântica e um tanto inocente. Se antes o narrador descrevia em detalhes a menina, agora, ele percebe minuciosamente o militar, em especial as vestimentas semelhantes a de Nicolau I. As botas fora de moda do militar chamam a atenção de Ivan Vassílievitch, que enxerga naquele sapato uma imagem de bom pai, afinal, tal figura paterna está se sacrificando a fim de dar tudo o que há de melhor para sua filha. Há outro aspecto para se notar nos sapatos do militar: eles são feitos de couro de bezerro. Lembremos que Tolstoi era vegetariano e condenava a matança de animais, uma prática imoral, segundo o autor russo, que desenvolveu melhor essa reflexão em um ensaio intitulado O primeiro degrau (1891). De certa forma, mesmo que a temática não esteja explícita, a ética vegetariana está presente no conto.

Após o episódio do baile, estando em sua residência,  Ivan não consegue tirar a moça de seus pensamentos e resolve, então, ir à casa dela. No entanto, presencia um episódio violento que desmorona todo o encantamento vivido na noite anterior. Soldados, comandados pelo pai da jovem, estão agredindo um homem tártaro, grupo étnico que estava sob domínio do império russo. Ivan, imediatamente, se choca com a agressividade da situação, que, segundo o protagonista, “[…] beirava a náusea, a tal ponto, que parei várias vezes, e parecia que a qualquer momento vomitaria todo aquele horror que entrara em mim por causa daquele espetáculo.” ( Tolstói, 2011, p. 648) Recordemos-nos, além disso, que o autor não era simpatizante do militarismo:

“[…] Por isso, todo o governo, e ainda mais o governo ao qual é outorgado o poder militar, é a instituição mais terrível e perigosa do mundo. O governo, no sentido mais amplo, incluindo capitalistas e a imprensa, não passa de uma organização em que grande parte das pessoas se encontra sob o poder de uma pequena parte; essa pequena parte, por sua vez, se submete ao poder de uma parte ainda menor, e esta, a outra ainda menor e assim por diante, chegando, finalmente, a algumas poucas pessoas ou a um único indivíduo que, por meio da violência militar, exerce o poder sobre todos os restantes.” ( Tolstói, 2011, p.172)  

Mesmo diante do horror praticado pelos militares, Ivan tenta, ainda, justificar o que está acontecendo: eles devem estar sabendo de algo do qual eu não sei. É justamente após o baile, um acontecimento aleatório, que determina a vida de Ivan. O rapaz retira-se daquela cena selvagem e resolve não se alistar para o serviço militar. De alguma forma, o personagem está em direção oposta ao que seria um caminho viável para um homem de sua classe social.

 É intrigante a ruptura que Tolstói constrói na narrativa. A noite anterior, com indivíduos da alta classe social, em um ambiente elegante e uma música agradável é rapidamente esquecida ao presenciar o que favorece a continuidade do evento aristocrático. O homem que agride seu semelhante é , na verdade, um pai de família que ama a sua filha, que dançou algumas horas antes com ela. Contudo, após o baile, ele é semelhante a Nicolau I, antigo governante autoritário da Rússia do século XIX, assim, essas duas características do coronel – pai amoroso e o agressor- convivem simultaneamente. Além disso, este conto reflete acerca do pacifismo, do antimilitarismo e até do vegetarianismo que está presente na figura da bota do militar, como já foi mencionado anteriormente. Talvez seja possível argumentar que o russo sintetiza, neste conto, suas reflexões desenvolvidas ao final da vida, isto é, ele passa a acreditar em “[…]  uma ética do amor e da não violência.” (Bezerra, 2000, p. 17) 

Em  uma prosa elegante, Tolstoi elabora uma crítica ao militarismo e ao sistema opressivo utilizando o gênero conto, o qual, assim como os romances, desempenham um importante papel na tradição literária russa. Logo, para quem deseja iniciar a caminhada pela Rússia, sem se intimidar com os “tijolões”, Depois do Baile é uma excelente experiência, tanto com o gênero literário, quanto com a cultura russa do início do século XX. 

O conto foi traduzido pela Graziela Schneider . Compre a antologia do conto russo clicando aqui

Referências Bibliográficas

BEZERRA, Paulo. Tolstói Contista. In: TOLSTÓI, Liev. O diabo e outras histórias. São Paulo: Cosac & Naify, 2000. p. 7-26

TOLSTÓI, Liev. Os últimos dias. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2011. p.36-53. 

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