Imagem: Collider
Podcasts estão cada vez mais ganhando telas. Não me refiro à sua expansão para os “videocasts”, mas sim à adaptação de seu conteúdo para obras de ficção. Posso citar dois exemplos, um real e um fictício: Dirty John era um podcast de true crime que foi adaptado para uma série com o mesmo nome e teve duas temporadas exibidas na Netflix. Também na Netflix, temos a nova série de comédia romântica Nobody Wants This, título que vem do podcast fictício apresentado pela protagonista junto com a irmã, onde as duas falam sobre sexo e relacionamentos amorosos. A garota da vez parece muito com uma adaptação de podcast para a ficção, mas, apesar de ter os componentes que melhor se assentam ao formato – crimes reais e relacionamentos –, o filme não tem origem nas histórias contadas em áudio, embora pareça muito familiar para qualquer ouvinte do gênero.
Esse suspense, que parece um podcast de true crime, é a estreia de Anna Kendrick como diretora. Aqui ela atua e dirige, mostrando a versatilidade que a fez ser um dos únicos nomes memoráveis da safra Crepúsculo, além de Robert Pattinson e Kristen Stewart. É admirável que uma mulher tenha uma atuação consistente em tantas frentes da indústria: ela canta, atua e agora dirige. Mas talvez ainda seja necessário mostrar se esse desdobramento ocorre porque Kendrick ainda não se encontrou no “seu elemento”.
Em Woman of the Hour, ou A Garota da Vez – título que chega ao Brasil em 2024 –, Kendrick também interpreta uma mulher que precisa se encontrar na indústria do entretenimento. Após uma crítica ácida em uma audição, ela vai parar em um programa de TV para encontrar um par perfeito, tudo com o objetivo de alavancar a carreira de atriz em Los Angeles. Apesar da metalinguagem, a história não é sobre ela, mas sobre um serial killer misógino que matou e abusou sexualmente de mais de 100 vítimas nos anos 1970.
Rodney Alcala é o protagonista que cometeu todos esses crimes na vida real. A interpretação de Daniel Zovatto do assassino é um dos pontos fortes do filme: ele consegue dar ao personagem aquele carisma que o coloca entre a estranheza e o charme, num lugar que, à primeira vista, nos leva a simpatizar com o excêntrico. É com essa composição que Alcala seduz suas vítimas e isso também agrega valor, ainda que indiretamente, a outro elemento louvável da obra: a bela fotografia em vários momentos. O fato de seu personagem ser um fotógrafo profissional demanda ângulos artísticos que estabelecem uma semiótica de contraste em algumas cenas, nas quais a violência ocorre de forma grotesca sobre o canvas de uma fotografia belíssima e pacífica.
A questão do serial killer misógino protagonizar o filme não parece ser proposital. Na verdade, é outro fator que torna A garota da vez mais semelhante a uma adaptação de podcast. A sequência não linear e a montagem fazem a trama realmente parecer o resultado da colagem de flashbacks que surgiriam de uma conversa entre apresentadores e convidados em uma mesa de podcast. Pode-se até deduzir que os avanços e retornos do enredo ao longo da década de 1970 servem para mostrar que o criminoso não teve nenhuma evolução ou mudança de caráter com o passar do tempo. No entanto, essa linha do tempo bagunçada apenas enfatiza o protagonismo de Alcala, relegando às vítimas a um papel secundário, inclusive a personagem feminina que passa toda a trama tentando denunciar o assassino.
Embora possa fazer parte de uma abordagem experimental, a sequência não linear também não parece uma boa decisão para dar força aos momentos de maior tensão do filme. Quando Alcala figura como um dos pretendentes da personagem de Kendrick no programa de TV, seria muito mais intrigante explorar o fato de ele ser um criminoso foragido aparecendo em rede nacional. No entanto, como é apenas mais um episódio de Alcala em meio a sua escalada de crimes nos anos 1970, essa situação quase passa despercebida, exceto no momento em que a personagem da amiga de uma vítima morta por ele verbaliza o insólito com todas as letras.
A caracterização da década de 1970 é um tanto artificial e até caricata, impedindo muitas vezes, especialmente nas cenas que se passam no programa de TV, que a atmosfera sombria do true crime se instaure. Contudo, a cena em que Alcala persegue a personagem de Kendrick em um estacionamento deserto à noite é de uma tensão sufocante. Mas você não esperaria menos que isso de uma diretora mulher, uma vez que, infelizmente, (quase) toda mulher já passou por isso na vida.
Apesar desses pontos, o filme parece até mais breve do que seus 95 minutos de duração. Mas certamente essa leveza não é o que se espera de uma obra sobre uma temática tão delicada. O que parece é que Kendrick usou mais cores do que precisava para tratar de uma questão sombria, que muitas vezes precisa ser abordada com mais incômodo e até gatilhos. Tanto isso faz sentido que o filme recorre a vários textos em tela preta no final.
A Netflix pagou US$ 11 milhões para ter A garota da vez no seu catálogo, onde será o lugar perfeito para esse filme que tanto parece uma adaptação de podcast.
Minha nota para A Garota da vez no Letterboxd: 3 estrelas.