Enquanto assistia Dias Perfeitos, tive a ideia de começar esse texto apontando como, de tempos em tempos, algum cineasta de renome decide fazer um filme cuja mensagem pode se resumir a: ‘’caramba, pobre também é gente, não é mesmo?’’. É o caso, por exemplo, de Roma, do Alfonso Cuarón, cuja protagonista é fortemente baseada na empregada que cuidou do próprio diretor na infância.
Mas Dias Perfeitos é tão despido de interesse no seu próprio protagonista, Hirayama (Koji Yakusho) que é difícil vê-lo como pertencente a uma classe social ou qualquer coisa que seja. Ele é seu trabalho, limpador de banheiros para a Tokyo Toilet, iniciativa que renovou os banheiros públicos do Japão. Todos os dias ele veste o seu uniforme, um macacão com o nome do projeto em letras garrafais, e parte no seu pequeno carro para manter os belamente desenhados lavatórios limpos.

Pode se fazer o argumento que o novo filme de Wim Wenders é, na verdade, um trabalho institucional para a Tokyo Toilet. Há um cuidado especial mostrando a manutenção e inventividade desses espaços. Uma cena conta com Hirayama ensinando uma usuária do toalete a deixar sua estrutura opaca. Da rotina de limpeza, se enfatiza os aspectos mais minuciosos, como o uso de um pequeno espelho para verificar se a parte de baixo dos vasos sanitários está limpa. Não seria uma surpresa se trechos do filme aparecessem em um futuro vídeo para investidores, ou até mesmo uma propaganda comercial.
Entre uma limpeza e outra, Hirayama observa a vida, as pessoas que usam os banheiros, a paisagem, sempre com sua câmara analógica ao lado, pronto para tirar uma foto da natureza, suas pequenas interações com outras pessoas. Um filme sobre a ‘’poesia do cotidiano’’, onde as menores coisas se tornam preciosas.

Ou pelo menos a ideia é essa, mas Wenders realiza um filme tão livre de fricção, tão desinteressado em olhar a rotina para além de uma visão contemplativa, que o resultado é simplesmente monótono. Fico pensando nos filmes de André Novais, cuja ideia de cotidiano é similarmente preciosa, mas ele busca realmente extrair algo dessas situações, e não as toma como poéticas por si só.
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Parte dessa superficialidade está na decisão de tornar Hirayama um protagonista praticamente mudo, cujo método de interação com o mundo é a observação pura e simples. Ele é pouco mais que uma maneira de olhar as coisas, nosso único acesso a sua interioridade são os sonhos que tem a noite. Fora isso, ele atravessa o mundo como um fantasma. Como afirmei no início, é difícil defini-lo como qualquer coisa que seja em relação ao mundo, pois é despido de qualquer relação com o mundo para além de ser um meio de registro.

Há uma tentativa de torná-lo mais que isso, com a visita de uma sobrinha e breve interação com a irmã, fazendo menção a um drama familiar. Existem também as interações com outras pessoas, mas que se resumem a clichês. O jovem irritante que trabalha com Hirayama é “redimido” por sua amizade com uma criança PCD, o protagonista brinca com um homem que está prestes a falecer.
Para bater o martelo da obviedade, Dias Perfeitos se encerra com “I’m feeling good” de Nina Simone, cuja letra simplesmente reitera tudo que o filme é. Enquanto Nina canta, Hirayama dirige, ele sorri, mas algumas lágrimas surgem, e ali ele fica, no limite entre a alegria e tristeza, uma sugestão muito mais interessante do cotidiano do que as duas horas prévias.