Gilberto Gil está fazendo uma turnê por todo país com o nome Gil Tempo Rei, levando Gil, nosso grande tesouro nacional em suas melhores versões. Quem for contemplar esta apresentação, poderá celebrar de maneira imersiva o TEMPO, enquanto entidade fundamental para a experiência humana.
Para Gil, o tempo está contido no AGORA e é por meio desta percepção que recebemos o convite e a proposta de embaralhar as cartas de sua própria história e viver juntamente com ele um espetáculo que o Brasil e o mundo irão guardar para sempre na memória.
E falando em memória e a importância de não esquecer, Gil compartilhou no X em resposta ao Jornal Nota, a história de Cálice, uma das suas composições mais emblemáticas, censurada pela ditadura militar, e aqui reproduzimos:
Cálice, composição censurada pela ditadura militar
Segundo Gil, a gravadora Polygram queria fazer um grande evento com todos os seus artistas no formato de encontros, e por isso foi dada a ele e ao Chico Buarque a tarefa de compor e cantar uma música em dupla.
Era o feriado da Semana Santa e eles marcaram um encontro no sábado de Aleluia no apartamento do Chico, na Lagoa Rodrigo de Freitas, referida pelo próprio Chico na letra. Gil pensou em levar alguma proposta e, um dia antes, no fim da tarde, se sentou no tatame, onde dormia na época, e se pôs a esvaziar os pensamentos circulantes para se concentrar.
Como era sexta-feira da Paixão, a ideia do calvário e do cálice de Cristo o seduziu, e ele compôs o refrão incorporando o pedido de Jesus no momento da agonia. Em seguida escreveu a primeira estrofe, que começou lembrando de uma bebida amarga chamada Fernet, italiana, de que o Chico gostava e que ele me oferecia sempre que ele ia a sua casa.
No sábado não foi diferente: ele trouxe um pouco da bebida, e Gil já lhe mostrava o que tinha feito. Quando, cantando o refrão, chegou ao ‘cálice’, no ato ele percebeu a ambiguidade que a palavra, cantada, adquiriu, e a associou com ‘cale-se’, introduzindo na canção o sentido da censura.
Depois, como Gil tinha levado só o refrão melodizado, trabalharam na musicalização da estrofe a partir de ideias que Chico apresentou. E combinaram um novo encontro.
Chico acabou fazendo outras duas estrofes e Gil mais uma, quatro no total, todas em oito decassílabos. Dois ou três dias depois se reviram e definiram a sequência.
Eu achei que devíamos intercalar nossas estrofes, porque elas não apresentavam um encadeamento linear entre si. Ele concordou, e a ordem ficou esta: a primeira, de Gil, a segunda, de Chico; a terceira, de Gil, e a última, de Chico.
Na terceira, o quarto verso e os dois finais já foram influenciados pela ideia do Chico de usar o tema do silêncio. O termo, aliás, já aparecia na outra estrofe composta por Gil, anterior:
‘silêncio na cidade não se escuta’, quer dizer: no barulho da cidade, não é possível escutar o silêncio; quer dizer: não adianta querer silêncio porque não há silêncio, ou seja: não há censura, a censura é uma quimera; além do mais, ‘mesmo calada a boca, resta o peito’ e ‘mesmo calado o peito, resta a cuca’: se cortam uma coisa, aparece outra.
Aí, no dia em que eles foram apresentar a música no show, desligaram o microfone logo após eles terem começado a cantá-la. Gil diz ter a impressão de que ela tinha sido apresentada à censura, tendo sido recomendado que não a cantassem, mas eles fizeram uma desobediência civil e quiseram cantá-la.
E nós, o público, agradecemos a desobediência civil do Gil e do Chico, pois assim, podemos contemplar AGORA, neste tempo de Gil, a belíssima letra de Cálice sem esquecer dos tempos severos da ditadura militar: