Quem é Rebecca F. Kuang ?
Autora da trilogia best-seller Guerra da Papoula, Babel, Yellowface e Katabasis, todos publicados no Brasil pela Editora Intrínseca, Rebecca também é tradutora de mandarim e bolsista da Marshall Scholarship. Mestra em Filosofia na área de Estudos Chineses por Cambridge e em Estudos Chineses Contemporâneos por Oxford, atualmente cursa o doutorado em Literatura e Línguas do Leste da Ásia em Yale. Vencedora dos prêmios Nebula e Locus por Babel ou a necessidade de violência.
Livro favorito de todos os tempos
Essa é uma pergunta impossível! Posso lhe falar de um livro de que gosto muito no momento, Fogo Pálido, de Vladimir Nabokov. Em primeiro lugar, porque é hilário e, em segundo, porque aborda todos esses incríveis desafios técnicos e os realiza de forma maravilhosa. Dá para perceber que ele foi escrito por alguém que respeita e se diverte muito com o inglês.
Rebecca F. Kuang
Fogo Pálido, de Vladimir Nabokov e com tradução de Jorio Dauster e S. Duarte

“Fogo Pálido” é considerado o livro mais engenhoso e complexo de Vladimir Nabokov. Publicado depois de Lolita (1955), quando o autor já era conhecido mundialmente, o romance tem estrutura de trama policial. Seu tema, porém, contrapõe-se ao tom detetivesco da narrativa – trata-se da análise de Fogo pálido, um poema de 999 linhas escrito pelo personagem John Francis Shade pouco antes de morrer. O poema, traduzido em rima e métrica, é a primeira parte do romance. A segunda transforma poesia em ficção – são os comentários sobre o poema, formulados por um amigo de Shade, Charles Kinbote, o delirante narrador do romance. Kinbote incentivara Shade a escrever o poema, que fala da vida do seu autor e da lendária terra de Zembla. Charles analisa trechos da obra e relaciona o texto a ele próprio.
Livros que gostaria de ter escrito
Há dois livros que espero poder me tornar uma escritora à altura, que são Os vestígios do dia e Um artista do mundo flutuante, ambos de Kazuo Ishiguro. Eu os vejo como complementares um ao outro, lidando com o legado da Segunda Guerra Mundial, e eles são simplesmente maravilhosos. Sou influenciada pela arte, pela paciência, pelo tratamento sutil dos temas – é uma das melhores análises da culpa pós-guerra.
Rebecca F. Kuang
Os vestígios do dia, de Kazuo Ishiguro e com tradução de José Rubens Siqueira.

O velho mordomo Stevens vai ao encontro de miss Kenton, antiga companheira de trabalho. Em viagem de carro pelo interior da Inglaterra, ele relembra os anos que dedicou a lord Darlington e reflete sobre a profissão. O romance de Ishiguro recebeu o Booker Prize 1989 e virou filme de prestígio. Neste livro do ganhador do prêmio Nobel de Literatura de 2017, o mordomo Stevens, já próximo da velhice, rememora as três décadas dedicadas à casa de um distinto nobre britânico, lord Darlington, hoje ocupada por um milionário norte-americano. Por insistência do novo patrão, Stevens sai de férias em viagem pelo interior da Inglaterra. O mordomo vai ao encontro de miss Kenton, antiga companheira de trabalho, hoje mrs. Benn. No caminho, recorda passagens da vida de lord Darlington e reflete sobre o papel dos mordomos na história britânica. Num estilo contido, o narrador-protagonista acaba por revelar aspectos sombrios da trajetória política do ex-patrão, simpatizante do nazismo, ao mesmo tempo em que deixa escapar sentimentos pessoais em relação a miss Kenton, reprimidos durante anos.
Um artista do mundo flutuante, de Kazuo Ishiguro e com tradução de José Rubens Siqueira.

Masuji Ono, protagonista e narrador deste primoroso romance do vencedor do prêmio Nobel de literatura, é um homem de seu tempo. Pintor de grande renome do Japão antes e durante a Segunda Guerra Mundial, ainda jovem Masuji desafiou o pai para seguir a vocação artística e, durante seu desenvolvimento criativo, lutou contra as amarras da arte tradicional japonesa para dar lugar a uma produção propagandística a serviço de seu país. Usando a influência de que gozava perante as autoridades do governo imperial, Ono buscava ajudar pessoas de bem em situações menos favorecidas do que a sua.
Ambientado nos anos imediatamente após a rendição, o romance descortina a vida de Masuji já aposentado, procurando entender as mudanças vividas pelo país e impressas na mentalidade da geração mais jovem, da qual fazem parte suas duas filhas. Ao procurar entender por que as negociações para o casamento da mais nova delas foram abruptamente interrompidas, o protagonista se vê levado a rememorar sua vida de artista e professor respeitado e a enfrentar a consequência dos próprios atos no destino de seus descendentes.
Retrato comovente de um momento histórico cujos desdobramentos se veem até os dias de hoje, Um artista do mundo flutuante é também um poderoso romance sobre a velhice, a culpa e a passagem do tempo.
Livro que gostaria que todos lessem
Fight Like Hell, de Kim Kelly, que é uma história dos movimentos trabalhistas nos EUA. Estamos em um período interessante em que o sentimento pró-sindicato está em alta e eu gostaria de ver esse impulso crescer, especialmente entre os jovens.
Rebecca F. Kuang
Fight Like Hell: The Untold History of American Labor, de Kim Kelly.

Mulheres negras se organizando para obter proteção no Sul após o fim da Guerra Civil Norte-Americana. Trabalhadores imigrantes judeus do setor de vestuário enfrentando condições mortais por um pouco de independência. Trabalhadores rurais asiático-americanos rejeitando a servidão sancionada pelo governo em todo o Pacífico. Trabalhadores encarcerados defendendo direitos humanos básicos e salários justos. O líder sindical negro queer que ajudou a orquestrar o movimento pelos direitos civis nos Estados Unidos. Esses são apenas alguns dos heróis que impulsionaram a luta incansável dos trabalhadores americanos por justiça e proteção perante a lei.
Neste livro, Kim Kelly, colunista da Teen Vogue e repórter independente sobre trabalho, escava essa história não contada e mostra como os direitos que o trabalhador americano tem hoje – a semana de trabalho de quarenta horas, os padrões de segurança no local de trabalho, as restrições ao trabalho infantil, a proteção contra assédio e discriminação no trabalho – foram conquistados literalmente com sangue, suor e lágrimas.
Livro sem tradução para o português.
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Livro que a ajudou a superar um momento difícil
Eu estava passando por um sério bloqueio criativo, me sentindo muito esgotada e estressada, e escrever não parecia mais mágico. Isso provavelmente teve muito a ver com o fato de eu estar em um programa de doutorado e não dormir muito! Então li Piranesi, de Susanna Clarke. O livro é lúdico e tem uma nota constante de otimismo e admiração pelo mundo que me incentivou a começar a escrever novamente.
Rebecca F. Kuang
Piranesi, de Susanna Clarke e com tradução de Heci Regina Candiani.

Em uma realidade onírica, magia e razão estão intrinsicamente ligadas nesta obra que se entranha por tênues labirintos místicos e extraordinários. Piranesi vive na Casa. Talvez, sempre tenha vivido. Em seus diários, dia após dia, ele registra de maneira clara e cuidadosa todas as maravilhas que encontra: o labirinto de salões, as milhares de estátuas, as marés que invadem as escadarias, as nuvens que se movem em uma procissão lenta pelos cômodos de cima. Habitualmente, encontra-se com o Outro, sua única companhia e com quem divide as pesquisas e explorações. Às vezes, Piranesi também leva oferendas aos mortos, mas, na maior parte do tempo, está só. De repente, mensagens começam a surgir no chão, rabiscadas a giz. Há alguém novo na Casa. Mas quem é essa pessoa e o que ela quer? É amigável ou traz consigo destruição e loucura, como diz o Outro? Textos perdidos têm de ser encontrados. Segredos esquecidos precisam ser revelados. O mundo que Piranesi pensava conhecer está se tornando obscuro e perigoso.
Livros para levantar o astral
Adorei as coletâneas de contos de Ted Chiang. Eu e meu noivo as lemos juntos durante a pandemia. Líamos um conto por dia, depois fazíamos longas caminhadas e conversávamos sobre ele. Era como resolver um quebra-cabeça juntos. O estilo de Chiang é muito claro e simples, e a prosa não atrapalha as ideias incrivelmente legais com as quais ele está brincando.
Rebecca F. Kuang
Expiração, de Ted Chiang e com tradução de Braulio Tavares.

O conto que dá título ao livro, ganhador do prêmio Hugo em 2009, é a mensagem alarmante de uma civilização muito mais avançada e já extinta de seres com órgãos mecânicos. Com cilindros de ar no lugar de pulmões, eles acreditam que viverão para sempre, até que um cientista resolve investigar a si mesmo e faz uma incrível descoberta: o ar respirável só existe porque seu fluxo no universo está em desequilíbrio, numa espécie de osmose.
Já “O Grande Silêncio” mostra os esforços dos seres humanos em busca de vida inteligente alienígena, apesar de não conseguirem conviver sequer com outras espécies no próprio planeta. Em “A ânsia é a vertigem da liberdade”, Chiang cria um mundo onde se questiona o tempo inteiro a existência do livre-arbítrio, uma vez que existe um dispositivo que permite que as pessoas se comuniquem com versões de si mesmas em universos paralelos. Se hoje dispomos de gadgets com inteligência artificial em uma fase quase inicial de desenvolvimento, em “O ciclo de vida dos objetos de software” vemos como a ideia de animais e pessoas robotizadas com níveis de inteligência artificial elevados ao extremo nos faria repensar os conceitos de “ser vivo” e “direitos”.
Misturando doses certas de ficção científica às nossas questões mais antigas enquanto espécie e indivíduos, a narrativa de Chiang impressiona e estimula profundas reflexões sobre o homem, a humanidade, a sociedade e o livre-arbítrio.
História da sua vida e outros contos, de Ted Chiang e com tradução de Edmundo Barreiros.

Entre as histórias dotadas de rigor científico, humanidade e lirismo estão “A torre da Babilônia”, na qual um minerador sobe a famosa torre com a missão de escavar a abóbada celeste; “Divisão por zero”, uma reflexão precisa e devastadora sobre o fim da esperança e do amor, e “História da sua vida”, na qual uma linguista aprende um idioma alienígena que modifica sua visão de mundo.
Com uma prosa límpida e ideias às vezes desconcertantes, Chiang comprova seu inegável talento para a boa ficção científica: a capacidade de contar uma história humana, extremamente bem escrita, na qual a ciência funciona como expressão dos questionamentos mais profundos enfrentados pelos personagens. Um livro repleto de ideias originais e passagens inesquecíveis.
O conto que dá título ao livro, “História da sua vida”, foi adaptado para o cinema sob o título A Chegada, numa produção de Denis Villeneuve, estrelada por Amy Adams e Jeremy Renner.