“Melancolicamente”: poesia de Renata de Alcântara Stuani retrata os subterfúgios da melancolia

Traçar a melancolia na arte é sempre uma coisa difícil porque ela tem feições fugidias e, muitas vezes, se esconde nas entrelinhas das palavras e nos silêncios das imagens. Freud já havia dito que a grande diferença entre o luto e a melancolia é que esta é uma tristeza sem objeto, sem prazo de validade, sem ancoragem na realidade. E, realmente, a melancolia mais do que um sentimento, é um modo de ver um mundo. Isto é, talvez, a principal sacada de Renata de Alcântara Stuani, em seu livro Melancolicamente. 

Melancolicamente, livro de estreia de Renata de Alcântara Stuani, publicado em 2021 pela Luva Editorial, com edição de Vitor Uchôa é um compilado de cerca de cem poemas da jornalista paulista que já circulou por diversos países, como Portugal e Peru, e diversos jornais, como Veja e Agência Estado. 

Entre poemas breves e longos, a autora mostra pela primeira vez seus escritos para o mundo nas cerca de 130 páginas do livro e o título, me parece, tem um papel essencial para traduzir os diversos caminhos traçados por Renata ao longo da obra. Melancolicamente é dividido em seis sessões: “meninices”, “feminina, “masculino”, “lugares”, “divindades”, “amor e luto”, como se a obra fosse acompanhando uma espécie de “maturação” das temáticas dos poemas que começam nas lembranças nostálgicas da infância e na formação da autora até seus deslocamentos pelo planeta e tentativas de se encontrar metafisicamente como mulher no mundo.

O jogo que se dá em Melancolicamente é que, mais do que a melancolia como substância, ou seja, o substantivo traçando “a melancolia poética de Renata”, e mais do que a melancolia como adjetivo – “a poesia melancólica de Renata” – a melancolia aqui é um modo. Pois é, o sufixo “mente” aporta ao termo uma espécie de “modo melancólico” e isto muda tudo porque nestes poemas o que veremos nem sempre será triste, nem sempre será alegre, nem sempre será feliz e nem sempre será nostálgico. A melancolia não é uma matéria direta, mas seu modo, como se fosse um traçado de fundo que aparecesse sempre nos não ditos da autora. 

A palavra mesmo vai aparecer três vezes. Uma delas dando título ao poema “Melancolicamente Moça”, outra no poema 1970, que faz parte da sessão “Feminina”, em que, logo ao fim do poema, diz:

E só o que me resta é
uma palavra:
Melancholia


E outra em “Circuitos emolientes”, no belo final:

“Melancolicamente deitado
num cadafalso inventado
o meu país subsiste 
submerso e alheio
ao seu emoliente cansaço”

Melancolia, pintura de Edvard Munch

Nesta segunda parte, por exemplo, a melancolia é traço de um país, de uma construção coletiva e não necessariamente de um indivíduo. Mas…como dissemos, este é apenas uma das características de sua escrita. Na primeira parte do livro, apesar dela dar o nome de “meninices”, o livro já começa com um gesto de retirada do que se acabou de oferecer. O primeiro poema é “Menina não realizada”, cujas últimas palavras são:

“Menina dolorida e desmembrada,
peço imensíssimas desculpas 
por não te ter realizado.” 

O trecho emociona porque vai de encontro e expõe o infeliz fracasso de uma proposta que José Saramago já havia ancorado tão bem entre o seu eu e sua criança interior:  “Tentei não fazer nada na minha vida que envergonhasse a criança que fui”. Para Renata, é o contrário. Em seguida, a poesia se confronta também com a dor atravessando o destino dela criança, sem entender nada, e do silêncio do seu pai, entendendo tudo, ao descobrir do assassinato de John Lennon: “A gente queria ser London. / A gente um dia até queria ser Ono. / E hoje a gente / não quer ser mais nada”. Diante dessa iminente queda da inocência dela ao ver nos olhos a tristeza do pai, Renata também expõe suas disputas com o destino, agora em um dos poemas mais lindos do livro:

eu tenho um destino
pronto a falhar
um estilhaço de viço
um estigma baço
um enigma que surge
diário 
molhado do ventre 
do dia nascente
como uma maldição com vista enluarada 
somente do meu quarto

As referências que Renata utiliza nos poemas são muitas, desde um traçado drummondiano que ressoa no fundo de nossos ouvidos, até menções diretas como o poema “Na Quarentena com Ana C.”, em que a autora remete ao poema em que Ana Cristina Cesar lava os pezinhos e sente o doce cheiro do desejo. Já ela, se despede desse cheirinho porque o próprio lavar-se se torna um gesto erótico: “Adeus, cheirinho / Lava a coxa, lava do pé até o tórax / Ainda não acabou / Vem cá!”

Leia também: O que é luto e melancolia para Sigmund Freud?

Renata de Alcântara Stuani

Também podemos destacar o poema dedicado à morte do poeta Manoel de Barros que a havia ensinado a entender que o mundo não dará destaque ao que importa porque “a gente era dentro (…) / pro imenso / dentro do / pra fora.” Sobra até um escrito que homenageia a clássica capa da banda Secos e Molhados em que as cabeças dos membros do grupo são servidas em uma bandeja, uma bela forma de mostrar como conheceu essa que é uma das bandas mais importantes do nosso país e liderada pelo ícone Ney Matogrosso:

“Meu pai me contou
Dos quatro degolados
E me trouxe as cabeças
Decepadas na bandeja”

O mais interessante de Melancolicamente, enquanto procedimento poético, é encontrar a medida da coragem da poesia que confessa, mas o faz formalmente, jogando com as palavras como quem realmente travou essa batalha. As questões das desigualdades de gênero e questões femininas que atravessam o livro buscam sempre um traço de universalidade, uma forma de que o eu se rasgue para fora em um outro. Não à toa, veremos em vários momentos este jogo entre dentro e fora, eu e outro, subjetividade e outridade.

Por fim, deixo um dos meus trechos preferidos que, para além da melancolia, também lançam frivolidades que passam mulheres e, com humor, sabem que a poesia é mais uma forma de jogar com e contra o mundo:

“No entanto, Maria,
confessar é preciso…
Só o que sinto é recato
pelo bad hair de hoje
e pelo buço mal-feito”.

Melancolicamente é um grande livro de poemas porque ousa ser simples, melancólico, mas profundamente honesto em cada sentimento. E isso está longe de ser pouco. Mergulhem no mundo de Renata de Alcântara Stuani.

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