A fragilidade da vida é um dos principais pontos de interseção da humanidade. Nosso lado precário e solitário de nos vermos lançados em um corpo, em um tempo e em um território e termos de atravessar a via crucis que é viver. Porém, nessas interseções, alguns corpos estão mais submetidos à fragilidade e à precariedade que outros. E é sobre isso que “Eu sou um Hamlet”, espetáculo de França, busca refletir.
“Eu sou um Hamlet” é um monólogo denso, cascudo, pesado, hermético em que Rodrigo assume a pele do clássico personagem shakespeariano, Hamlet. O espetáculo tem direção de Fernando Philbert e tradução de Aderbal Freire-Filho, Wagner Moura e Barbara Harrington, além da adaptação de Jonathan Raymundo, Philbert e França.
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O dilema de Hamlet, pensando numa contemporaneidade como fez Jan Kott, não é tanto o de vingar o pai e matar o tio, mas um dilema que atravessa também tudo aquilo que forma um indivíduo: será que ainda devemos escutar nossos fantasmas? Será que devemos tomar posse do nosso próprio destino? Será que a violência é uma opção plausível e viável?
Porém, o próprio Shakespeare parece não ser tão hamletiano, ao lançar a sua história para a Dinamarca, afastando as denúncias de seu próprio país, a Inglaterra de Elizabeth. O deslocamento afasta e desvia. Apesar disso, o que faz Shakespeare é buscar um devir minoritário em Hamlet, um contrapoder através do teatro, da loucura e do sonho como forma de enfrentar a realidade bruta que todos os dias: seu tio deita na cama de sua mãe no lugar de seu pai. Veja bem, Hamlet não quer o poder de seu tio, ele quer desfazer esse poder para deixá-lo vago, uma vez que quem tinha o direito a ele foi brutalmente assassinado.
E é através deste ponto que podemos adentrar na montagem de França: se é verdade que Hamlet é a parábola mais perfeita do ser humano moderno, o espetáculo dá a ele ainda outra camada, a minoritária da negritude e da decolonialidade. Colando ao personagem de Hamlet os impasses da negritude, “Eu sou um Hamlet” tenta nos dizer que dentro de uma pele negra existem diversos ecos das violências sofridas e silenciadas durante séculos.

Além disso, nos dá um retrato de que estas violências não estão pacificadas dentro dos corpos negros, pelo contrário, elas gritam em seus ouvidos querendo sair para fora, mas esbarram em um mundo que estereotipa toda ação de corpos negros como “violenta”. Então, diante disso, se chega ao impasse hamletiano: “ser ou não ser?”
Aceitar a passividade pacata das violências sofridas ou responder na mesma moeda? Tornar seu corpo dócil e amansado pelas regras coloniais da branquitude ou permitir o pulsar de sua ancestralidade? Devolver a violência sofrida tendo a certeza de que a reação do oprimido nunca se equivale a violência do opressor ou escolher outros métodos?
“Eu sou um Hamlet” não é um espetáculo para responder a esses dilemas, mas para nos contar que eles existem. E, principalmente, para ocupar palcos importantes do teatro brasileiro para tratar dessas ambivalências em uma espécie de ritual coletivo em que todos são convocados a participar e pensar.

O cenário repleto de carcaças de refletores nos trazem a imagem de um teatro pós-apocalíptico: com algumas brigadas e trincheiras aqui e acolá, uma cena aberta que não busca se esconder, mas cuja esperança ainda é possível. As vozes que intercalam os diálogos da dupla França-Shakespeare servem como guias e costuram monólogos que poderiam ficar demasiadamente esparsos.
O melhor de “Eu sou um Hamlet” é que, se Hamlet é mesmo essa voz coletiva das minorias, Rodrigo França construiu o seu dando uma voz decolonial ao inglês, uma voz que, a partir de agora não pertence mais a Europa, mas já foi antropofagizada nesse espetáculo difícil, pesado, mas que deve ser ouvido.
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