Obra clássica do filósofo francês Félix Guattari, “Revolução Molecular” ganha nova edição pela Ubu Editora.
“Militar é agir. Pouco importam as palavras, o que interessam são os atos”. É assim que Félix Guattari inicia o ensaio “Somos todos grupelhos”, no qual defende a potência dos grupos para resistir ao individualismo que marca a modernidade capitalista. A frase traduz o percurso desse pensador e ativista que revolucionou o pensamento sobre o sujeito na sociedade capitalista: dedicou a vida à filosofia e a política na mesma medida, por não acreditar que se tratavam de campos distintos.
As contribuições de Guattari para a esquizoanálise e para a análise institucional – campos da psicologia que dialogam com a filosofia, a sociologia e outras áreas de conhecimento – são imensuráveis; mas se essas parecem palavras difíceis e incompreensíveis, vamos a uma breve definição, fundamental para compreender o pensamento de Guattari. Se a psicanálise freudiana se debruçou sobre a falta para pensar o sujeito, a esquizoanálise de Guattari e Gilles Deleuze apostou que é pelo excesso que se entende o desejo. E se Freud pensou a partir da neurose, Guattari e Deleuze buscaram na esquizofrenia a potência de um desejo que recusa a ordem imposta do mundo e do capitalismo.
Através de seu trabalho na clínica psiquiátrica de La Borde, na França, Guattari uniu filosofia e militância para pensar os efeitos da própria instituição na constituição do que se entende por loucura. A perspectiva guattariana da análise institucional tem como objetivo desfazer as instituições por dentro – não só o manicômio, mas toda e qualquer instituição que prende e reduz o sujeito, compreendendo de que modos esses processos de institucionalização apagam a diferença. Não a toa, a filosofia de Guattari se insere em uma área da filosofia chamada Filosofia da Diferença.
A base do pensamento de Guattari parte da ideia de que existem, nos processos socio-históricos e subjetivos, forças macropolíticas e forças micropolíticas. As macropolíticas, ou molares, são aquelas forças duras, instituídas, que falam de processos rígidos, que aprisionam, serializam, binarizam, individualizam. É contra essas forças que, em geral, as revoluções lutam. Mas Guattari chama a atenção para a urgência de se pensar as forças micropolíticas, pois é nelas e a partir delas que será possível criar outras possibilidades de ser e estar no mundo: as forças micropolíticas, ou moleculares, são o foco da atenção de Guattari, pois são elas que resgatam a dimensão coletiva e política da vida.
Assim como me parece ilusório apostar numa transformação paulatina da sociedade, penso que as tentativas microscópicas, por exemplo comunidades, comissões de bairro, etc., podem desempenhar um papel absolutamente fundamental.
Félix Guattari
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Revolução Molecular é uma coletânea de ensaios através dos quais Guattari defende a importância de que a crítica do modo de vida capitalístico, como ele o define em outro livro, Micropolíticas: cartografias do desejo, se dê também – e especialmente – no nível molecular, micropolítico. O século XX foi marcado por tentativas macropolíticas de derrotar o fascismo e a lógica capitalista, sem, no entanto, considerar os modos como esses sistemas políticos e econômicos se assentaram e moldaram nosso próprio modo de ser e pensar o mundo. Por isso são tão fortes, tão capazes de se perpetuar: porque nossa subjetividade é construída a partir deles.
A partir das experiências de grupos minorizados – travestis, loucos, gays, mulheres – o livro é composto por ensaios nos quais o autor mergulha em conceitos filosóficos na mesma medida em que reflete sobre suas intervenções no campo da saúde mental e do ativismo. Da política organizada do Partido Comunista Francês ao seu rompido com o Partido por causa da Guerra da Argélia, da psicoterapia institucional em La Borde às experiências do Maio de 68 – movimento estudantil que transformou irremediavelmente as críticas ao capitalismo no Ocidente -, Guattari oferece vislumbres deliciosos de seu pensamento.
Às vezes de forma densa e complexa, outras com a simplicidade que só é possível àqueles e àquelas que vivem o que pregam e pensam a partir do chão em que pisam, Guattari oferece pistas e ferramentas – conceitos também muito utilizados por ele – para quem, como ele, busca estratégias para resistir ao capitalismo e produzir vidas pautadas na diferença e na liberdade.
O livro foi publicado originalmente em 1977 e a primeira edição brasileira, de 1981, chegou pela Brasiliense. Agora, a Ubu Editora presenteia o público brasileiro com uma nova edição baseada na última versão publicada enquanto Guattari esteve vivo, trazendo textos da edição de 1977 em seu apêndice.
Desde 2016, a Ubu se dedica a publicações do campo da antropologia, filosofia, psicanálise, literatura clássica, design e artes visuais. A publicação desta edição de A Revolução Molecular parece perfeita, já que Guattari caminha por entre todas essas áreas e mais.
O livro é dividido em três partes: Revolução Molecular e a Luta de Classes, no qual podemos conhecer as perspectivas de Guattari sobre a psicanálise, o socialismo, o marxismo; A Europa dos Camburões e/ou a Europa dos Novos Espaços de Liberdade, cujos ensaios oferecem análises brilhantes sobre a política da supostamente consolidada democracia; e Micropolíticas do Desejo e da Vida Cotidiana, em que podemos ver muito do Guattari profissional de saúde mental e militante.
Se, em 2024, chega até nós uma nova edição de Revolução Molecular, isso não se deve apenas à dificuldade de encontrar as edições anteriores no mercado editorial e sebos, mas principalmente porque há algo no pensamento de Guattari que ainda precisamos aprender. Há, na verdade, urgência em retornarmos às suas reflexões para construirmos resistências possíveis em um mundo em constante movimento que por vezes nos faz pensar que não há nada a fazer e em outras nos faz pensar que a liberdade já está dada quando, na realidade, “a liberdade é uma luta constante”, para citar Angela Davis. Em um cenário no qual avança a extrema-direita e os direitos conquistados pela árdua luta de quem nunca deixou de acreditar na potência da micropolítica parecem escorrer por entre nossos dedos, é urgente voltarmos a Guattari e inventarmos para nós máquinas desejantes dispostas a seguir criando outros possíveis.