O que Gilles Deleuze pensava sobre os livros de Proust?

A obra fundamental de Marcel ProustEm busca do tempo perdido, nunca deixou de interrogar o filósofo Gilles Deleuze. Em 1964, ele publicou Proust e os signos, com a primeira parte do livro que o leitor agora tem em mãos. Nela, Deleuze lê a obra de Proust como o relato de um aprendizado da decifração de sinais, culminando na revelação final da Arte como a mais alta espécie de signos. Em 1970, após Diferença e repetição (1968), o filósofo retornou a Proust e acrescentou ao livro uma segunda parte, “A máquina literária”, na qual ele investiga o sistema de ressonâncias que Em busca do tempo perdido engendra e a dimensão transversal que responde por sua unidade. Posteriormente, em 1973, tendo já atravessado a aventura de O anti-Édipo (1972), Deleuze voltou à obra proustiana com o texto que enc erra o presente volume, em que associa seu procedimento narrativo à construção de uma teia e a figura de seu narrador àquela da Aranha que se move ao menor sinal emitido pela presa.

Neste Proust e os signos, com nova tradução de Roberto Machado, um dos grandes conhecedores de Deleuze no Brasil, o leitor pode acompanhar todo o percurso de leitura do filósofo francês que, no espaço de uma década, passou da decifração dos signos à sua intensa devoração.

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Que posso aprender com Deleuze em seu aprendizado com Proust?


Aí está uma pergunta que distintas leituras desta excelente tradução de Roberto Machado terão a oportunidade de responder das mais variadas maneiras, de modo que surgirão múltiplas jogadas num considerável campo de encontros disparadores de aprendizados. É quase certo que isto ocorrerá por várias razões. Uma delas pode ser assim resumida: sensível à problemática do pensamento criativo, tanto nas artes como na filosofia, Proust e os signos é o livro no qual Deleuze expõe o que revela ter aprendido com a narrativa de Proust, com a potência crítico-analítica da Recherche tratada do ponto de vista da experiência de pensar.

Que aprendizado Marcel Proust estaria relatando em sua imensa obra Em busca do tempo perdido? Trata-se, diz Deleuze, “do aprendizado de um homem de letras” — tarefa que diz respeito essencialmente aos signos, e que se dá na observação das “decepções e revelações” que atingem o narrador, e cujo andamento vai ritmando a Recherche. Em sua trajetória, o narrador-protagonista atravessa “diferentes mundos de signos, que se organizam em círculos e se cruzam em certos pontos”. O primeiro deles é o da “mundanidade”; o segundo, o do amor; o terceiro, o “das impressões ou das qualidades sensíveis”; o último é “o mundo revelado da Arte”, para o qual todos os signos convergem. Em todos esses “mundos”, as descobertas proustianas se dão por “decifração e interpreta cedil;ão” de signos.

Veja também: Conversações: Uma rara conversa entre Gilles Deleuze e Luiz Orlandi

Nesse lugar movediço, as próprias lembranças dos caminhos assinalados na grande obra “são menos fontes de lembrança do que matérias-primas, linhas do aprendizado”, ou seja, “caminhos de uma ‘formação’”, que nos levam, nietzscheanamente, a apreender o futuro, e não o passado, como a tensão temporal que orienta a obra.

Paralelamente, a complexa unidade da multiplicidade literária da Recherche não paira abstratamente sobre o livro, mas se organiza por si mesma, diz Deleuze, numa “dimensão de transversalidade” — conceito “muito fértil” que atribui a Félix Guattari, e que tende a dizer esse constante “sair de si mesmo”, característico dos “ritornelos”, como a pequena frase da sonata de Vinteuil que transporta o enigma de uma conectiva virtualidade.

Há um ponto decisivo vivido por Deleuze no cruzamento de suas buscas e investigações pela obra proustiana e seus confrontos com discutíveis pressupostos filosóficos, como a suposição de que pensar implica a boa vontade do pensador. “O filósofo pressupõe de bom grado que o espírito como espírito, o pensador como pensador, quer o verdadeiro, ama ou deseja o verdadeiro, procura naturalmente o verdadeiro.” Com Proust aprende-se outra coisa. “O que nos força a pensar”, diz o filósofo, “é o signo. O signo é o objeto de um encontro; mas é a contingência do encontro que garante a necessidade daquilo que ele faz pensar. O ato de pensar não decorre de uma simples possibilidade natural; é, ao contrário, a única criação verdadeira.”

Proust e os signos assinala um dos momentos conceitualmente mais fortes do envolvimento de Gilles Deleuze com a obra de Marcel Proust, encontrando em sua pulsação vital um lugar de emergência, e não apenas um lugar de incidência desse algo a que chamamos “ideias”.

Luiz B. L. Orlandi

Sobre o autor

Gilles Deleuze nasceu em 1925, em Paris. Estudou no Liceu Carnot e depois filosofia na Sorbonne, onde obteve o Diploma de Estudos Superiores em 1947. Entre 1948 e 1957 lecionou nos liceus de Amiens, Orléans e no Louis-Le-Grand, em Paris. Trabalhou como assistente em História da Filosofia na Sorbonne entre 1957 e 1960, e foi pesquisador do CNRS até 1964, ano em que passou a lecionar na Faculdade de Lyon, lá permanecendo até 1969. De 1969 a 1987, deu aulas na célebre Universidade de Vincennes, um dos polos do ideário de Maio de 1968, quando firmou a sólida e produtiva relação com Félix Guattari de que resultaram os livros O anti-Édipo (1972), Kafka (1975), Mil platôs (1980) e O que é a filosofia? (1991). É autor também de obras fundamentais como Diferença e repetição (1968), Lógica do sentido ( 1969), Cinema 1 — A imagem-movimento (1983), Cinema 2 — A imagem-tempo (1985) e Crítica e clínica (1993), além de estudos sobre Hume, Kant, Bergson, Nietzsche, Espinosa e Foucault, entre outros. Faleceu em Paris, em 1995, e é hoje considerado um dos mais importantes filósofos do século XX.

Sobre o tradutor


Roberto Machado nasceu no Recife em 1942. Fez bacharelado em Filosofia pela Universidade Católica de Pernambuco (1965), e mestrado (1969) e doutorado (1981) em Filosofia pela Université Catholique de Louvain, na Bélgica. Realizou diversos estágios no Collège de France, sob orientação de Michel Foucault, entre 1973 e 1981, e fez seu pós-doutorado na Universidade de Paris VIII, com Gilles Deleuze, em 1985-86. Foi professor da UFPb (1970), da PUC-RJ (1971-1981), do Instituto de Medicina Social da UERJ (1974-1979) e professor titular do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IFCS-UFRJ), onde lecionou de 1982 a 2017. Publicou os seguintes livros, entre muitos outros: Nietzsche e a verdade (Rocco, 1984), Deleuze e a filosofia (Graal, 1990), O nascimento do trágico: de Schiller a Nietzsche (Zahar, 2006) e Impressões de Michel Foucault (n-1 edições, 2017). De Gilles Deleuze, traduziu Proust e os signosDiferença e repetição (com Luiz B. L. Orlandi) e Sobre o teatro: O esgotado e Um manifesto de menos (com Fátima Saadi e Ovídio de Abreu). Faleceu no Rio de Janeiro em 19 de maio de 2021.

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