Conceição Lima é um dos nomes expressivos da poesia são-tomense contemporânea. Nasceu em 1961, em Santana, São Tomé e Príncipe, país africano de língua portuguesa que se tornou independente de Portugal em 1975. Em Portugal, formou-se em Jornalismo. Mais tarde, licenciou-se em Estudos Africanos, Portugueses e Brasileiros em King’s College em Londres e atuou como jornalista e produtora dos serviços de Língua Portuguesa da BBC. Regressou a São Tomé para trabalhar na imprensa, exercendo vários cargos. Em 1993, fundou o Semanário independente O País Hoje.
Começou a escrever na juventude e passou a publicar diversos poemas em jornais, revistas, e antologias em vários países. O útero da casa (2004), A dolorosa raiz do micondó (2006) e O país de akendenguê (2006) são algumas de suas obras. Destaca-se como a escritora santomense mais traduzida na atualidade. Sua obra tem como uma das temáticas principais o resgate do passado tanto ao revisitar suas origens quanto ao reconstruir poeticamente a história de um país marcado pela ação colonialista e pela escravidão.
Conheça alguns poemas da autora:
O guardião
Sobre todas as coisas, o guardião
venera o eco da própria voz.
No anel de bondade em redor do trono
decretou a obediência do vento
e a vassalagem dos frutos.
A herança
Sei que buscas ainda
o secreto fulgor dos dias
anunciados.
Nada do que te recusam
devora em ti
a memória dos passos calcinados.
É tua casa este exílio
este assombro esta ira.
Tuas as horas dissipadas
o hostil presságio
a herança saqueada.
Quase nada.
Mas quando direito e lúgubre
marchas ao longo da Baía
um clamor antigo
um rumor de promessa
atormenta a Cidade.
A mesma praia te aguarda
com seu ventre de fruta e de carícia
seu silêncio de espanto e de carência.
Começarás de novo, insone
com mãos de húmus e basalto
como quem reescreve uma longa profecia
A mão
Toma o ventre da terra
e planta no pedaço que te cabe
esta raiz enxertada de epitáfios.
Não seja tua lágrima a maldição
que seqüestra o ímpeto do grão
levanta do pó a nudez dos ossos,
a estilhaçada mão
e semeia
girassóis ou sinos, não importa
se agora uma gota anuncia
o latente odor dos tomateiros
a viva hora dos teus dedos.
Descoberta
Após o ardor da reconquista
não caíram manás sobre os nossos campos.
E na dura travessia do deserto
Aprendemos que a terra prometida
era aqui.
Ainda aqui e sempre aqui.
Duas ilhas indómitas a desbravar.
O padrão a ser erguido
pela nudez insepulta dos nossos punhos.
Estátuas
Neste país as estátuas desdenham alturas.
Traficam na praça, devassam estradas
Têm mãos pensativas e barro na planta dos pés.
Metamorfose
Hoje as palavras nada dizem de naufrágios.
Pétalas apenas
Pétalas não visíveis
Infinitas pétalas
E na ponta dos nossos dedos
O fantasma de uma doce, habitável Cidade
Suas vestes de púrpura e de lenda
Seu corpo, fruto tenaz e justa partilha.
De uma exacta metamorfose somos testemunhas.
O país de Akendenguê
Os homens regressam
Carregados de cidades e distância.
Adormecem os grilos.
Uma criança escuta a concavidade de um búzio.
Talvez seja o momento de outra viagem
Na proa, decerto, a decisão da viragem.
Aqui se engendram alquimias
Lentos hinos bordados em lacerações
Sossegaram os mortos
Há grutas e pássaros de fogo
Rebentos de incômodos recados.
O difícil ofício de lavrar a paciência.
Acontece a arte da viagem
Tanta aprendizagem de leme e remendo…
É quando o olho imita o exemplo da ilha
E todos os mares explodem na varanda.
Os heróis
Na raiz da praça
sob o mastro
ossos visíveis, severos, palpitam.
Pássaros em pânico derrubam trombetas
recuam em silêncio as estátuas
para paisagens longínquas.
Os mortos que morreram sem perguntas
regressam devagar de olhos abertos
indagando por suas asas crucificadas
Antes do poema
I
Quando o luar caiu
e tingiu de magia os verdes da ilha
cheguei, mas tu já não eras.
Cheguei quando as sombras revelavam
os murmúrios do teu corpo
e não eras.
Cheguei para despojar de limites
o teu nome.
Não eras.
As nuvens estão densas de ti
sustentam a tua ausência
recusam o ocaso do teu corpo
mas não és.
Pedra a pedra encho a noite
do teu rosto sem medida
para te construir convoco os dias
pedra a pedra
no tem que te consome
As pedras crescem como vagas
no silêncio do teu corpo
Jorram e rolam
como flores violentas
no silêncio do teu corpo
E sangram. Como pássaros exaustos.
A noite e o vento se entrelaçam
no vazio que te espera.
II
Súbito chegaste
quando falsos deuses subornavam
o tempo
chegaste para despedir
a insónia e o frio
chegaste sem aviso
quando a estrada se abria
como um rio
chegaste para resgatar
sem demora o princípio.
Grave o silêncio rodeia o teu corpo
hostil o silêncio agarra teu corpo.
Mas já tomaste horas e abismos
já a espessura do obô
resplandece em tua testa.
E não bastam pombas em demência
no teu rosto
não bastam consciências soluçantes
em teu rasto
não basta o delírio das lágrimas libertas.
Eu cantarei em pranto
teu regresso sem idade
teu retorno do exílio na saudade
cantarei sobre a terra
teu destino rebelde.
Para te saudar no mar e no palmar
na manhã do canto sem represas
cantarei a praia lisa e o pomar
Direi teu nome e tu serás.
Afroinsularidade
Deixaram nas ilhas um legado
de híbridas palavras e tétricas plantações
engenhos enferrujados proas sem alento
nomes sonoros aristocráticos
e a lenda de um naufrágio nas Sete Pedras
Aqui aportaram vindos do Norte
por mandato ou acaso ao serviço do seu rei:
navegadores e piratas
negreiros ladrões contrabandistas
simples homens
rebeldes proscritos também
e infantes judeus
tão tenros que feneceram
como espigas queimadas
Nas naus trouxeram
bússolas quinquilharias sementes
plantas experimentais amarguras atrozes
um padrão de pedra pálido como o trigo
e outras cargas sem sonhos nem raízes
porque toda a ilha era um porto e uma estrada sem regresso
todas as mãos eram negras forquilhas e enxadas
E nas roças ficaram pegadas vivas
como cicatrizes — cada cafeeiro respira agora um
escravo morto.
E nas ilhas ficaram
incisivas arrogantes estátuas nas esquinas
cento e tal igrejas e capelas
para mil quilómetros quadrados
e o insurrecto sincretismo dos paços natalícios.
E ficou a cadência palaciana da ússua
o aroma do alho e do zêtê d’óchi
no tempi e na ubaga téla
e no calulu o louro misturado ao óleo de palma
e o perfume do alecrim
e do mlajincon nos quintais dos luchans
E aos relógios insulares se fundiram
os espectros — ferramentas do império
numa estrutura de ambíguas claridades
e seculares condimentos
santos padroeiros e fortalezas derrubadas
vinhos baratos e auroras partilhadas
Às vezes penso em suas lívidas ossadas
seus cabelos podres na orla do mar
Aqui, neste fragmento de África
onde, virado para o Sul,
um verbo amanhece alto
como uma dolorosa bandeira.
Fonte:
Templo Cultural Delfos