O livro é um objeto fascinante. Não é a toa que, muitas vezes, com ele em mãos, costumamos correr, com a comum pressa do dia a dia, para extrair dele o que seria o seu sumo ou, como se poderia pensar erroneamente, “sua essência”. Ao contrário deste movimento, prefiro adentrar no objeto livro lentamente, como se com uma lupa – para o caso dele ser um microcosmos – ou um telescópio – acaso fosse um universo inteiro – eu pudesse a cada traço retirar dele um gesto de totalidade, um ritmo, uma permanência ou uma ausência.
Assim que abordei EU no mundo que SOU no mundo que é em MIM, de Éder Rafael de Araújo, me demorei em seu título. Ou antes ainda, atentei para a epígrafe: “Em memória de Jean / Na esperança de Felipe / Para Ju”. É que diante do livro, já de cara, encontrava o traço que me remeteu ao pensamento de Derrida: desarmar as duplicidades para engendrar um terceiro, um outro capaz de desfazer o fascismo do pensamento moderno de “eu que bato no mundo e o mundo que bate em mim”. E aí entendi que esta tríade que arma a memória – a instância do passado que se atualiza no presente – a esperança – o presente que se aponta para o futuro – e o presente, a partir de um simples “para Ju”, que aprofunda este agora até o limite máximo como se só ele fosse capaz de compor essa experiência chamada livro. Foi neste instante, também, que passou por mim o título do livro: Se o mundo é aquilo que eu invento, não há mundo para além de mim e, por conseguinte, estamos frente a um mundo expandido, uma aventura ou um jogo entre um eu e um outro. Nesta fresta, eu embarquei.
EU no mundo que SOU no mundo que é em MIM, é um livro de poesia de Éder Rafael de Araújo. O livro é composto por 7 partes. São elas: Poemas em Si, que trata de questões relativas ao fazer poético e o exercício da metalinguagem; Poemas do Eu, com reflexões ao redor da subjetividade e da composição de um eu diante de questões tanto existenciais quanto relativas à vida comum; Poemas do Mundo, em que o autor escreve e se inscreve frente aos eventos do mundo, como uma criança morta na guerra da Síria ou a presença de um homem cuja imagem pode ser, também, bomba; Poemas da Morte, em que Éder encara o tema da morte, do suicídio, da inutilidade da vida e da fragilidade, enquanto existência, que pode se desvanecer em apenas um gesto; Poemas da Presença/Ausência, dois momentos em que a instância amorosa e o enamoramento tomam a frente dos poemas que se colocam na direção de um amor que vem e de um amor que vai; e o Poemas da Vida, que fecha o livro e propõe uma espécie de celebração irônica, divertida e reflexiva de toda a trajetória da vida ou, quem sabe, do próprio livro.
No prefácio da obra, Nefatalin Gonçalves Neto, amigo de Éder e pós-graduando da USP, aponta para uma poesia que se coloca entre o apolíneo e o dionisíaco. Ele aproxima as reflexões de Nietzsche para apontar que a escrita do autor está entre uma poesia que se coloca em uma instância entre os limites da razão e o limite do corpo. Parto disso, também, para pensar a poesia de Éder a partir da imagem de limiar ou de abismo, na medida em que sua escrita por ser vista entre o que está, na terra, como mapa – mesmo que negativamente:
E, em tempo, árido e encharcado
O mapa e os pontos pretos não são nada
E o corpo é um caminho obsoleto
Os pés, os rasgos, os rios e o sangue
São só representantes pictóricos
Esquemas constelares de um zodíaco
O que se pode ver é, então, uma cartografia da vida que se insere na fronteira e, como escrita, oscila entre os limites do que é escrever, mas, ao mesmo tempo, se coloca como enfrentamento ao abismo: um limite cujo próximo passo é a autoextinção. Frente a esta poesia das margens, Éder passeia com uma cabeça de criança e até anunciando uma possível Emília, o ser dionisíaco por excelência criado por Lobato, que, ao contar suas Memórias para Visconde, o apolíneo, afirma assertivamente que depois da morte só há uma coisa, hipótese:
Não sou um ser, sou estado
Um quantum qualquer de energia
Um pulso vagando no espaço
Entre hipótese e teoria (pg. 38)
Entretanto, é impossível não abordar a poesia de Éder sem olhar para seus próprios sintomas: o autor aponta em sua escrita inicial que sua poesia é um ultrassom “do eu e do mundo”. Se é assim, e se é verdade que o ultrassom nos dá um mapa interior dos movimentos de dentro, o que temos é, de certa forma, uma (quase) vitória do dionisíaco sobre o apolíneo, na medida em que a fronteira do “entre” será – e é – constantemente rompida por essa movimento convulso interno, visto apenas em seu semblante, sua fantasmagoria. Há exemplos, como ver as coisas deste mundo como simultaneidade:
O poema vai naquilo que volta
o poema nasce naquilo que é morrido nele
o poema cria o que no mundo já estava criado…ou destruído
por isso é preciso criar mais. (pg. 27)
Este recurso contemporâneo que se distingue de sua corruptela frágil da reciprocidade é movimento já apontado pela geografia através de Franco Farinelli em A Invenção da Terra, e largamente explorado pelo catastrófico Paul Virilio em Velocidade e Política. Veja: embora o que Éder esteja fazendo seja metalinguagem, o movimento é de passagem, de aceleração do poema que vai, volta e já morre, como se, natimorto, só existisse na próxima palavra, nunca na que está escrita.
Ao lado da velocidade, da escrita que acelera a própria morte, há também a ideia de algaravia, ou seja, uma espécie de confusão de línguas, uma “babel”, tal como vista por Borges, de “excessos e silêncios”, com uma “língua neurótica”:
O poema se faz vivo e gameta
Para morrer sob a incógnita
Para apodrecer na cripta
Escura de uma gaveta. (p. 33)
Esta anunciação que passa por Ferreira Gullar: “é preciso deixar passar a fome…”, por Augusto dos Anjos: “Pinta o céu de cores rúbias / Oh, sol de cores espúrias / Que seja mesmo evanescência / Que me dê qualquer sentido.”, anunciando um Fernando Pessoa: “Sou tudo / Duma vez / E um mundo que não se fez / Sou nada!” e esbarrando, até, em João Cabral: “O silêncio escondido / No anonimato / Sabe tudo de mim / Minha roupa, meus hábitos /O número dos meus sapatos /O maldito silêncio Inominado Inanimado Imaginado.”
Entretanto, a poesia de Éder ultrapassa suas próprias referências interiores. Ela é autoirônica, faz referência a si própria e faz passagem entre o mundo erudito e o popular, de Nietzsche a Chaves (sem-querer-querendo), afinal, quem é ele na fila do pão, não é mesmo? Ora, é bastante coisa, faz mover a tradição e não se deixa prender pelo que a poesia, muitas vezes impõe.
Sobre os Poemas da Morte, apenas um apontamento: a meu ver é possível expandir sua proposição para desarmar e desarticular uma ideia de morte em suas estruturas, dando a ela um outro aspecto. Não vejo a questão da morte ou a do suicídio, nos poemas, a partir da visão existencialista de Sartre, nem seu parente próximo, Camus, mas acho que a morte, neste caso, é desdobramento do ato de escrever, do fazer poético e, em última instância, em potência de mundo. A meu ver, estes poemas não são exatamente sobre a morte. São sobre o morto. Ou mais ainda sobre o vivo que se debruça sobre o instante em que se morre, ou seja, são ainda sobre a vida, sobre o que sobeja de vida diante da imagem da morte. É que o problema moderno não é mais sobre a metafísica da morte, mas sobre o morto: o que fazer com o corpo, tanto vivo quanto morto. Isto se desdobra na questão da palavra, como em Findo Texto:
Ela me disse por detrás de um riso
“Você tem muita vida pela frente”
Me disse uma desgraça dessas, crente
De que mais vida é do que eu preciso (p. 93)
Ora, se palavra é, desde a modernidade, uma das faces da morte, como a palavra pode escrever algo? E onde estaria essa “tal vida do que eu preciso?” A resposta de Éder está entre o existencialismo – o horizonte é o que vejo – e uma metafísica negativa: acredita fielmente na palavra do que não existe. Neste caso, a poesia é uma espécie de simulacro, pode ser corpo, vida em latência, mas pode ser também ensaio, emulação, jogo, como no poema Escada Morrente (p. 96)
Entre o apolíneo e o dionisíaco, entre o limiar e o abismo, entre a palavra e a morte e, principalmente, entre vida e escrita, a poesia de Éder Rafael de Araújo explora o mundo pelo interior de uma experiência humana. Sua obra é uma espécie de sua biografia imaginada ou uma invenção de um mundo na escrita em que poesia coincide com a passagem do tempo e, ao fim, se confunde com a algaravia que é Éder. Trata-se de uma obra imponente e não reflete a vida porque entende que a vida não é espelho, mas infere, engendra, produz uma vida: um jogo de dados de Mallarmé, que jamais poderá abolir o acaso.
Para conhecer mais do autor, acesse:
www.rafaeder.com