[Publicado anteriormente no Literatortura]
O século XIX da Rainha Vitória, na Inglaterra, foi um divisor de águas quando se trata de literatura: é sinônimo de muitos autores que influenciaram globalmente o ofício da escrita. Podemos citar Charles Dickens, o escritor de sucesso meteórico e de maior renome da época, com Grandes Esperanças, Oliver Twist e Um Conto de Natal, que nunca falhou em fazer literatura de modo que entretivesse o público e, ao mesmo tempo, oferecesse uma representação das classes sociais mais oprimidas. Também conhecemos seu rival, William Thackeray (Vanity Fair), Charlotte, Emily e Anne Brontë com seus respectivos romances revolucionários, George Eliot (Middlemarch), Thomas Hardy (Longe deste insensato mundo), Lewis Carroll, Robert Louis Stevenson e, ao fim do século, Oscar Wilde. A própria obra de Dickens, como a esmagadora maioria de outros trabalhos da Inglaterra vitoriana, demonstra uma abordagem caliginosa muito característica do Gótico. Entretanto, não faltaram representantes mais distintivos do gênero. Personagens como Drácula, Edward Hyde (“O Médico e o Monstro”), o Homem Invisível e até mesmo Sherlock Holmes apresentam aspectos exóticos, sobrenaturais, ou, no caso de Holmes, uma inteligência grande demais para esse mundo. A literatura gótica, entretanto, é uma mistura entre romance e horror que retrata principalmente elementos ocultos como monstros, fantasmas, maldições e bruxaria (para ser bem abrangente) e seu prestígio se fez ainda mais evidente com a mania dos “penny dreadfuls”.
Os penny dreadfuls nasceram num contexto histórico de metamorfose: a Inglaterra vivenciava mudanças sociais que elevaram a taxa de alfabetização que, junto com a ascensão do capitalismo e da industrialização, levou à criação da indústria do entretenimento. A população começou a se interessar cada vez mais por romances (o que também elucida a popularidade de Dickens) e procurar outras formas de lazer. Tais mudanças, além da melhora no sistema de impressão e a construção de ferrovias e motores, contribuíram para um tipo de entretenimento direcionado às massas que deveria ser de fácil acesso e atrativo. Inicialmente os penny dreadfuls eram intitulados “penny bloods” e contavam histórias de aventura com piratas e salteadores de estrada, impressos em papel barato com uma ilustração preta e branca na capa e oito páginas. Mais tarde, sucumbiram ao sucesso do gótico e foram paridas pequenas histórias sensacionalistas de narrativa policial, em grande maioria abordando criminosos e entidades sobrenaturais. “Dreadful” significa terrível, asqueroso e “penny” era o antigo centavo da libra. Como cada exemplar era vendido a um penny, tendo em vista que sua venda era direcionada a membros masculinos da classe trabalhadora, foi consolidado o título “penny dreadful”.
O primeiro penny blood foi publicado em 1836 sob o título de “Lives of the Most Notorious Highwaymen, Footpads, &c.” (“Vidas dos Mais Notórios Salteadores de Estradas”, em tradução livre) e entre os anos 1830 e 1860 o gênero já contava com mais de 100 editoras, além de revistas que aderiram à mania. Os autores possuíam pelo menos dez histórias diferentes em circulação e eram pagos um penny por linha. Não é surpresa que os que tinham mais prática aprenderam que era mais rentável utilizar uma fonte staccato para escrever, e ainda fazer com que as duas ou três palavras que finalizavam um parágrafo fossem para uma outra linha. A ilustração, por sua vez, deveria ser mais sensacionalista possível: a principal instrução do editor para seu ilustrador era “mais sangue! Muito mais sangue!”. Cada história era publicada em sequência, e era comum garotos da classe trabalhadora que não dispunham de dinheiro formarem clubes para compartilhar o custo, passando os livretos de leitor para leitor quando terminassem. Outros rapazes também compravam exemplares consecutivos e depois alugavam para quem tivesse interesse. As histórias dos penny dreadfuls eram, em grande parte, baseadas em pessoas reais ou ainda contos góticos recontados. Nos primórdios do gênero, salteadores de estrada se fixaram como os protagonistas favoritos dos penny-readers. Na série “Black Bess or the Knight of the Road” foi contada a história do real salteador Dick Turpin e perdurou por 254 episódios. Um dos grandes editores da época, Edward Lloyd, ainda pegou carona no sucesso de Dickens e publicou uma série de dreadfuls derivados de seu trabalho, como “Oliver Twiss”, “Nickelas Nicklebery” e “Martin Guzzlewit”. (Cara, você podia fazer melhor que isso) (Ou não).
>Se as aventuras criminosas de Dick Turpin faziam os penny bloods venderem como água, logo os salteadores de estrada tornaram-se previsíveis demais e deram lugar a histórias mais medonhas. Transgressões ordinárias como envenenamentos, roubos, afogamentos foram aprimoradas com ajuda do sobrenatural. A afeição pelo horror, oriundo do final do século XVIII, voltou à circulação com narrativas sobre bruxas, personagens com interesse em toxicologia (o estudo dos venenos), princesas perdidas, homens mascarados, crianças roubadas, homens de títulos homicidas e etc. O penny dreadful de maior sucesso, “The Mysteries of London”, foi baseado em um livro francês e escrito por G W M Reynolds. Sua primeira publicação foi em 1844 e manteve-se em circulação por 12 anos, com mais de 4 milhões e meio de palavras. The Mysteries of London se inspirou na vida miserável dos menos afortunados de Londres, com direito a serial killers e o menor número possível de heróis como se espera de um penny dreadful. Seu sucesso é explicado pela realidade da narrativa, algo mais próximo da vida de seus leitores do que ladrões a cavalo. Outra história de sucesso foi publicada em 1846 sob o título de “The String of Pearls”, apresentando-nos pela primeira vez ao barbeiro demoníaco da Rua Fleet, Sweeney Todd, que já rendeu musicais e um filme dirigido por Tim Burton. Apenas um adendo: há uma possibilidade de que Sweeney Todd tenha sido uma personalidade real. Um antigo Ministro da Polícia de Paris, que serviu entre 1799 e 1815, possuía registros sobre um barbeiro parisiense que fazia tortas de vítimas e vendia-as para consumo humano.
Se alguns penny dreadfuls não eram baseados em fatos reais, algumas situações imitaram a arte e contribuíram para a decadência do gênero com a perseguição da imprensa. A literatura dos “garotos perdidos” aparecia entre os principais motivos pelos quais crimes eram cometidos por menores de idades, que supostamente roubavam seus empregadores, carregavam revólveres e fugiam de casas para viver em ferrovias por se espelharem nos anti-heróis das histórias. Em 1895, a primeira campanha parlamentar contra os penny dreadfuls foi lançada por serem “grosseiramente desmoralizantes” e de “caráter corruptor”. Alguns autores do gênero conseguiram produzir ficção popular e mais respeitada, como o jornalista G A Sala e Mary Elizabeth Braddon. A última ainda alegou que a quantidade de crime, envenenamento, traição e infâmia geral exigida pelos leitores era algo terrível.
O legado deixado pelos livretos, entretanto, não se dissipou junto com a sujeira do Tâmisa e os penny dreadfuls são considerados os precursores dos “dime novels” americanos (fim do século XIX e começo do século XX) e das revistas pulp. Em 2014, o canal de televisão Showtime começou a exibir a série “Penny Dreadful” (finalizada em 2016), uma ótima opção para quem tenha interesse na Londres sombria e vitoriana dos antigos folhetins sangrentos. Apesar de contar com personagens talvez sofisticados demais para os penny dreadfuls, como Dr. Frankenstein e Dorian Gray, o criador e roteirista John Logan mantém o espírito coletivo dos deserdados da sociedade na forma de uma gangue que combate a maldade pungente das ruas da cidade. A Londres recriada por Logan tem vampiros, sessões de possessão, bruxas, lobisomens, museus de cera encenando grandes crimes como os de Jack, o Estripador, e peças de horror sujando o palco de tinta escarlate. Temos um ex-James Bond, Timothy Dalton, fazendo o papel de Sir Malcolm Murray, um explorador do continente africano que come o pão que o diabo amassou após cometer barbaridades em nome da ganância; uma ex-bond girl, Eva Green, no papel de Vanessa Ives (rainha) uma médium em constante perseguição pelas forças ocultas, Ethan Chandler, um pistoleiro americano que decide auxiliá-los nos trabalhos noturnos, e Sembene, um senegalês e principal confidente de Malcolm. Victor Frankenstein e seu monstro, assim como Dorian Gray, são os personagens emprestados da literatura do século XIX que completam perfeitamente os fictícios de Logan. A cada episódio identificamos os anti-heróis carregados de demônios tão característicos dos penny dreadfuls. E nós nos tornamos cada vez mais similares aos espectadores do teatro Grand Guignol, que assistem de boca cheia a toda a chuva de sangue e horror, amedrontados até a espinha, mas satisfeitos com a distância entre a própria realidade e aquela dos garotos de rua de Londres.
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