“Multidão, solidão: termos iguais e permutáveis, para o poeta ativo e fecundo. Quem não sabe povoar sua solidão tampouco sabe estar só em meio a uma massa azafamada. (…) O andarilho solitário e pensativo tira uma embriaguez singular desta universal comunhão. Quem desposa facilmente a massa conhece gozos febris, dos quais serão eternamente privados o egoísta, trancado como um cofre, e o preguiçoso, internado como um molusco. Ele adota como suas todas as profissões, todas as alegrias e todas as misérias que a circunstância lhe apresenta”, As massas, Baudelaire.
Aos olhos de um homem em um café se destaca um sujeito misterioso na multidão. Dois primos observam da janela tudo o que acontece numa feira. Um poeta vive às margens da cidade buscando a própria escrita. Essas são as figuras que nós conhecemos no livro “Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo”, de Walter Benjamin. Nele, o autor constitui um mosaico do que foi a modernidade, no final do século XIX, entre Paris, Londres e Berlim. O grande destaque da obra é o significado do flâneur, termo em francês para aquele que é um andarilho, a pessoa que se perde pela cidade, andando e andando sem um destino e, assim, observa tudo a sua volta como se fosse novidade. É alguém aberto ao que o mundo expõe a cada segundo.
Para isso, Walter Benjamin compara o significado de multidão entre três autores: Baudelaire, Poe e Hoffmann. O que pretendo fazer é, na verdade, chamar a atenção para algo ainda mais curioso entre eles: o olhar vivo, surpreso, encharcado pelas cores da modernidade, do novo diante desses três autores. Primeiro, vamos começar com Baudelaire. Ele vivenciou intensamente as mudanças de Paris, em meio ao absinto, às prostitutas e às reformas urbanistas. E o que ele viu? Baudelaire era um flâneur. Havia muito para ser visto nessa virada do século XIX para o XX. Imagine pertencer a uma cidade que, em pouco tempo, passa a receber muito mais pessoas, formando multidões pelas ruas (não muito diferente da realidade urbana atual, não?). E ainda uma cidade que passa por reformas com muita rapidez. De um lado está a Paris antiga e, do outro, a moderna ainda em formação. A qual cidade você pertenceria, então, já que há tantas mudanças?
E o olhar de Baudelaire se depara com inúmeros personagens. A imagem do trapeiro, que recolhe o lixo da cidade, chama-lhe a atenção por ser semelhante à imagem do poeta, que o próprio Baudelaire assume. Ambos se encontram à margem da sociedade e as palavras e gestos entre os transeuntes são “guardados” pelo poeta assim como o lixo pelo trapeiro, ganhando uma nova forma agradável àquilo que é costumeiro. Assim como há a dificuldade de sobrevivência para o trapeiro, Baudelaire se vê solitário em Paris. Mas prefere ser solitário na multidão, assumindo as galerias e a vida pulsante das ruas como sua morada. Nisso reside, em Baudelaire, a essência do flâneur, porque toma a observação dos acontecimentos como igualmente relevante às palavras que cata enquanto perambula pela cidade.
Benjamin compara Baudelaire com Edgar Allan Poe, no conto O homem da multidão. O personagem do conto se encontra sentado junto à janela de um café, porque ficou muito doente por um tempo, mas agora já está em convalescença, em um estado de espírito de intenso entusiasmo por redescobrir tudo ao seu redor. Nesse estado de curiosidade efervescente, o personagem observa cada detalhe, pela janela, dos transeuntes da cidade. Mas logo um sujeito chama a atenção do convalescente, por causa de sua aparente insanidade. Fascinado por essa figura, o que o convalescente faz? Segue, pelas ruas, esse homem da multidão, querendo saber o motivo para aquele desespero e horror estampado no rosto do desconhecido. A questão é que, mesmo assim, é impossível descobrir quem era aquele homem e o que sentia. Ou seja, a massa se torna um grande mistério a partir da modernidade.
Em Poe, há uma junção entre o flâneur e o detetive, isto é, ambos andam pela cidade atentos aos detalhes que veem a fim de encontrar respostas, seja para crimes ou apenas para se deixar conduzir pelo fascínio enigmático exercido por um transeunte. Já a postura de Baudelaire é de um poeta que observa a modernidade a sua volta, mas não se deixa conduzir sem rumo pela multidão; pelo contrário, ele sabe muito bem que o seu objetivo é coletar o máximo de versos e acontecimentos e manter sua criação individual. A diferença é que o convalescente em Poe segue o sujeito sem um objetivo concreto, apenas pela curiosidade, deixando-se levar pelo caminho do outro.
É possível também traçar uma comparação entre esse convalescente de Poe e o personagem do conto de Hoffmann. O ímpeto que o primeiro tem, e que o leva à experiência de vivenciar a flânerie pelos passos dos outros e se emaranhar pela multidão não é o que o olhar do personagem no conto A janela de esquina do meu primo, de Hoffmann, experimenta. O primo observa todo dia o movimento do mercado, de uma janela localizada em um ponto privilegiado de seu apartamento. Ele não tem o movimento das pernas e, por isso, só pode observar a multidão de longe. Ou seja, ele não pode seguir o outro, a não ser pelo olhar. A janela chega a ser um consolo, pois é imaginando histórias que o primo se sente livre para conhecer a multidão. Porém, o faz do alto, distante, seguro e somente pela sua imaginação e pelo que o agrada. O primo ensina ao narrador a “arte de enxergar” as pequenas cenas de gênero, como se focassem em cada mundo da feira que ele via da janela.
Depois de ver do que se trata cada referência que Benjamin faz a Baudelaire, Poe e Hoffmann, temos que perceber a nuance que há no flâneur. Não é só uma pessoa que sai andando pela cidade. O flâneur tem fascínio por tudo o que vê, como o convalescente em Poe, e não hesita em se inserir na multidão para observar. Já Baudelaire se constitui por uma dualidade: se insere na multidão, observa tudo ao seu redor, mas não deixa de fazê-lo sem pesar e angústia ao se esforçar em proteger a sua individualidade. Seguir o outro significaria a ele perder a si mesmo, nas palavras de Benjamin. Mas se pensarmos assim, como fica, então, o convalescente em Poe?
É importante ver que há uma linha tênue entre o flâneur e o homem da multidão, porque o convalescente pode até ser movido pelos passos do outro, mas ainda tem algo que é seu: a curiosidade. Já no caso do homem da multidão, ele só deseja estar entre as pessoas para existir, a sua existência só ganha significado na massa. E esse homem da multidão está bem próximo de uma terceira figura que o próprio Baudelaire aponta existir na modernidade: o basbaque. Esse simboliza o fim do flâneur, pois já se encontra refém e perdido entre as mercadorias, haja vista que anda pelas lojas ansioso por consumir o que vê. Ou seja, tanto o basbaque quanto o homem da multidão, em Poe, são o fim da flânerie, dessa liberdade de andar, dos quais Baudelaire se distancia para evitar a neutralização na massa.
O olhar de Baudelaire é desiludido quanto à modernidade e ao seu espaço nela, não apenas pelo pouco que recebe por seus escritos e por não estar inserido no mercado literário, mas por se sentir estrangeiro na própria cidade. É por meio desse olhar que Baudelaire redefine o aspecto do herói moderno, que se sente também como um estrangeiro.
O poeta se arrisca por entre a massa atrás das rimas, mas com o cuidado de manter a sua individualidade. O convalescente em Poe gostaria de encontrar os olhos do homem da multidão, para pelo menos ver um ínfimo pedaço de sua alma e compreender o que o faz fugir. O narrador de Hoffmann se decepciona quando, ao descer à feira vê uma florista lendo o seu livro, não é notado como autor e, portanto, um indivíduo. E Baudelaire também receou perder a auréola que o qualificaria como um poeta e indivíduo.
Em suma, o olhar que Poe, Hoffmann e Baudelaire voltam à modernidade é um esboço do que veem. É um olhar incerto, duvidoso quanto ao corpo que a cidade está assumindo. A modernidade é até escorregadia para ser definida. O homem das multidões permanece misterioso; a imaginação do primo vendo a feira se movendo é infinita e nunca alcançará a total verdade dos transeuntes. Contudo, é dessa incerteza moderna que os três autores extraem a beleza. Eles olham para o mundo redescobrindo os fantasmas do passado. A criação torna-se o abrigo para o artista sobrevivente. Assim, o olhar deles é daquele que se sacrifica em ser estrangeiro entre os outros homens a fim de ser um “homem de espírito”, autônomo, um herói moderno.
Imagem de capa: O baile no Moulin de la Galette, Pierre-Auguste Renoir, 1876
Publicado no Literatortura em 01/07/2013
Revisado por Iêda Ágnes.