O espírito humano, muitas vezes, toma decisões cujas causas mostra não conhecer, sendo de supor que o faz depois de ter percorrido os caminhos da mente com tal velocidade que depois não é capaz de os reconhecer e muito menos reencontrar.
Em geral não se diz que uma decisão nos aparece, as pessoas são tão zelosas da sua identidade, por vaga que seja, e da sua autoridade, por pouca que tenham, que preferem dar-nos a entender que refletiram antes de dar o último passo, que ponderaram os prós e os contras, que sopesaram as possibilidades e as alternativas, e que, ao cabo de um intenso trabalho mental, tomaram finalmente a decisão. Há que dizer que estas coisas nunca se passaram assim. Decerto não entrará na cabeça de ninguém a idéia de comer sem sentir suficiente apetite, e o apetite não depende da vontade de cada um, forma-se por si mesmo, resulta de objetivas necessidades do corpo, é um problema físico-químico cuja solução, de um modo mais ou menos satisfatório, será encontrada no conteúdo do prato. Mesmo um ato tão simples como é o de descer à rua a comprar o jornal pressupõe, não só um suficiente desejo de receber informação, o qual, esclareça-se, sendo desejo, é necessariamente apetite, efeito de atividades físico-químicas específicas do corpo, ainda que de diferente natureza, como pressupõe também, esse ato rotineiro, por exemplo, a certeza, ou a convicção, ou a esperança, não conscientes, de que a viatura de distribuição não se atrasou ou de que o posto de venda de jornais não está fechado por doença ou ausência voluntária do proprietário. Aliás, se persistíssemos em afirmar que as nossas decisões somos nós que as tomamos, então teríamos de principiar por dilucidar, por discernir, por distinguir, quem é, em nós, aquele que tomou a decisão e aquele que depois a irá cumprir, operações impossíveis, onde as houver. Em rigor, não tomamos as decisões, são as decisões que nos tomam a nós. A prova encontramo-la em que, levando a vida a executar sucessivamente os mais diversos atos, não fazemos preceder cada um deles de um período de reflexão, de avaliação, de cálculo, ao fim do qual, e só então, é que nos declararíamos em condições de decidir se iríamos almoçar, ou comprar o jornal.
Certo não é com vinagre que se apanham moscas, não é menos certo também que algumas nem com mel se deixam apanhar.
Deve haver na minha cabeça, e seguramente na cabeça de toda gente, um pensamento autônomo que pensa por sua própria conta, que decide sem a participação do outro pensamento, aquele que conhecemos desde que nos conhecemos e que tratamos por tu, aquele que se deixa guiar por nós para nos levar aonde cremos que conscientemente queremos ir, mas que, afinal de contas, poderá ser que esteja a ser conduzido por outro caminho, noutra direção, e não para a esquina mais próxima, onde um bando de perdizes nos espera sem que o saibam, mas sabendo nós, enfim, que o que dá o verdadeiro sentido ao encontro é a busca e que é preciso andar muito para alcançar o que está perto.
É nas ocasiões de mais extremo apuro que o espírito dá a autêntica medida de sua grandeza.
Há venenos tão lentos que só vêm a produzir efeito quando já não nos lembrávamos da sua origem.
[Colaboração da leitora Vânia Sousa]
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