“Quem traduziu”: coletivo publica manifesto contra a exploração e precarização do trabalho de tradução do Brasil

Quando você lê um livro, uma coisa que chama atenção é a pergunta: “Mas quem traduziu?” Quando entramos em contato com literatura estrangeira, se não dominamos o idioma em que ela foi originalmente escrita, é imprescindível o fato de que necessitamos de um trabalho minucioso, dedicado, cheio de detalhes. Trabalho árduo, que muitas vezes passa despercebido: é preciso que o texto passe pelas mãos dos tradutores para que possa chegar até nós.

Não é uma tarefa fácil escrever, escolher as palavras para dizer o que se quer dizer, atribuir ao texto certas intenções, encontrar maneiras de expressar-se. Por isso é tão louvável o trabalho de um tradutor, que precisa buscar conexões entre as diferentes linguagens, selecionar cautelosamente as palavras que deverá utilizar para que o texto literário se mantenha o mais fiel possível ao original. 

Isso demanda muito mais do que uma tradução literal, palavra por palavra. O trabalho do tradutor exige criatividade e inspiração artística, pois é através de seus olhos que passaremos a conhecer autores estrangeiros. 

Não podemos deixar de lado ainda a vasta formação necessária para que se possa atuar na profissão, pois é necessário uma graduação, além das inúmeras pós-graduações ofertadas no país com foco em tradução. Alguns profissionais recorrem também ao mestrado e doutorado. Toda essa dedicação tem um custo financeiro e também a dedicação de anos de vida para que se possa obter o conhecimento necessário. 

Entretanto, apesar de toda sua dedicação e importância cultural, é com descaso e negligência que os profissionais da tradução vêm sendo tratados. O coletivo Quem traduziu publicou um manifesto para colocar-se contra este descaso, segundo eles:

“Não são incomuns as situações de atrasos no pagamento da tradução e mesmo de calotes, prática inadmissível, que prejudica uma das pontas mais frágeis da cadeia do livro: profissionais que trabalham de forma autônoma, sem garantias nem direitos trabalhistas, precisando com frequência conciliar esse trabalho com outras atividades remuneradas”

Além desta precariedade que prejudica os tradutores financeiramente, há também a indiferença com que são tratados na indústria editorial, fazendo pouco caso de seu trabalho, não lhes dando a devida importância e reconhecimento.

Entre a lista de reivindicações, menciona-se a exigência de que a tradução literária seja amplamente reconhecida como um trabalho autoral, de acordo com a Lei de Direitos Autorais 9.610/98, que o valor por lauda seja revisto e que haja uma correção anual de acordo com a inflação. Há ainda muitos pontos relacionados aos créditos recebidos pelo tradutor e o reconhecimento de seu trabalho na divulgação das obras traduzidas.

Esse é um tema muito relevante a ser discutido, tanto para quem faz parte do meio literário traduzindo,  participando de editoras e até mesmo os leitores, para que saibam que quando leem e desfrutam de uma obra estrangeira, houve muito esforço e trabalho de profissionais muitas vezes deixados de lado, porém que são uma peça central, que estabelecem uma ponte entre autores e leitores.

Leia abaixo o manifesto na íntegra:

A tradução literária é um trabalho autoral, criativo e artístico, que envolve uma série de escolhas e reflete a sensibilidade e a ética de quem traduz. No Brasil, livros traduzidos respondem por parte significativa da produção editorial. Apesar da relevância deste ofício para a sociedade, o cenário para quem traduz é de precariedade laboral, com remuneração defasada e condições contratuais adversas, sem uma política de pagamento de royalties. Em quase todos os contratos, quem traduz cede às editoras, em caráter definitivo, os direitos patrimoniais de sua tradução, não só para o mercado brasileiro, mas por vezes também para todos os países de língua portuguesa. Mesmo que o livro traduzido seja um sucesso de vendas, ganhe novas tiragens e prêmios ou seja adquirido por programas do Governo, quem o traduz não recebe nada além do valor inicial.

Não são incomuns as situações de atrasos no pagamento da tradução e mesmo de calotes, prática inadmissível, que prejudica uma das pontas mais frágeis da cadeia do livro: profissionais que trabalham de forma autônoma, sem garantias nem direitos trabalhistas, precisando com frequência conciliar esse trabalho com outras atividades remuneradas.

No Brasil, quem traduz literatura vive então um paradoxo: ser peça-chave da indústria livreira enquanto sofre com a invisibilidade e a desvalorização profissional. Um dos sintomas disso é que pouquíssimas editoras colocam o nome de quem traduziu na capa e com frequência o crédito da tradução não é mencionado na divulgação dos livros.

Diante desse cenário problemático, este manifesto busca apontar caminhos de mudança que contribuam para um mercado editorial mais justo, ético e saudável. 

Posto isso, nossas reivindicações são:

  • Que a tradução literária seja amplamente reconhecida como um trabalho autoral, conforme a Lei de Direitos Autorais 9.610/98;
  • Que o valor defasado da lauda seja revisto, permitindo que a tradução literária seja uma profissão economicamente viável; 
  • Que o valor da lauda seja corrigido anualmente, de acordo com a inflação;
  • Que todos os contratos de tradução sejam discutidos de modo a satisfazer ambas as partes; 
  • Que seja estipulado um prazo de pagamento na contratação da tradução e que ele seja respeitado;
  • Que sejam pagos royalties a quem traduz, além do valor das laudas traduzidas, no caso de obras de autores em domínio público, livros adquiridos por programas governamentais, vendas especiais e após o livro cobrir seus custos;  
  • Que seja obrigatória a renegociação dos direitos autorais quando a tradução for vendida para outros países de língua portuguesa ou outras editoras brasileiras;
  • Que os direitos de uma tradução sejam revertidos para seu tradutor caso o livro saia de catálogo, a editora feche ou não publique a obra em um período de 10 anos;
  • Que a negociação seja por projeto, e não por lauda, no caso de poesia, obras infantis, juvenis ou com alta complexidade de linguagem;
  • Que seja remunerado o trabalho de curadoria, quando quem traduz pesquisa e apresenta às editoras novas obras;
  • Que quem traduziu receba o texto final após a etapa da preparação, com prazo razoável para revisá-lo;
  • Que o nome de quem traduziu conste na capa e que o crédito da tradução seja mencionado em todos os materiais de divulgação produzidos pelas editoras;
  • Que jornais, revistas e plataformas digitais de difusão literária adotem a cultura de informar em suas publicações quem traduziu o livro citado. 

Convidamos mais pessoas que traduzem literatura a assinarem e divulgarem este manifesto e esperamos que toda a comunidade leitora, jornalistas, formadores de opinião e, especialmente, as casas editoriais participem deste debate a favor da tradução literária. A melhoria nas condições de trabalho se traduzirá, certamente, na melhoria da qualidade dos livros, beneficiando a todos, sobretudo quem lê.

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