O Olho Mais Azul é o romance de estreia da primeira mulher negra a receber o Prêmio Nobel de Literatura e nasce da tentativa de Toni Morrison de responder a uma lembrança de infância: uma colega do primário, uma menina preta, desejava ter olhos azuis. Coincidentemente — ou não — também convivi com uma colega de classe que compartilhava desse mesmo anseio. Essa vontade, que beira o desespero, é encarnada na protagonista Pecola Breedlove, cuja trajetória é narrada sob a perspectiva de Claudia, que, já adulta, rememora os acontecimentos da infância, intercalando sua voz com capítulos narrados em terceira pessoa.
Toni Morrison escreveu seu primeiro livro em 1962, durante o efervescente movimento pelos Direitos Civis nos Estados Unidos. A escritora não poupa seu leitor, ela coloca o dedo nessa grande ferida social: o racismo estrutural da sociedade estadunidense, a ciclicidade dos traumas no ambiente familiar e o sofrimento silenciado da comunidade negra. A família Bredloove, radicada em Ohio, mora em um edifício demasiadamente precário. Após uma tragédia cometida pelo pai de Pecola, a menina, então, muda-se para a casa de Claudia, nossa narradora. Todas as personagens de Morrison estão enroladas em um fio de traumas e abusos. Desejo salientar, no entanto, a estratégia irônica que Morrison inicia a sua história:
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Esta é a casa. É verde e branca. Tem uma porta vermelha. É muito bonita. Esta é a família. A mãe, o pai, Dick e Jane moram na casa branca e verde. Eles são muito felizes. Veja a Jane. Ela está de vestido vermelho. Ela quer brincar. Quem vai brincar com Jane? Veja o gato. Está miando. Venha brincar. Venha brincar com a Jane. O gatinho não quer brincar. Veja a mãe. A mãe é muito boazinha. Mãe, quer brincar com a Jane? A mãe ri. Ria, mãe, ria. Veja o pai. Ele é grande e forte. Pai, quer brincar com a Jane? O pai está sorrindo. Sorria, pai, sorria. Veja o cachorro. Auau, faz o cachorro. Quer brincar com a Jane? Veja o cachorro correr. Corra, cachorro, corra. Olhe, olhe. Aí vem um amigo. O amigo vai brincar com a Jane. Eles vão jogar um jogo gostoso. Brinque, Jane, brinque.
O trecho acima pertence a uma cartilha de alfabetização amplamente utilizada no sistema educacional dos Estados Unidos entre as décadas de 1930 e 1970. Em suas páginas, Dick e Jane habitam um lar branco e feliz, em que tudo transcorre em harmonia. Há ironia e intenção no gesto de Toni Morrison ao iniciar seu romance com esse fragmento didático: trata-se da antítese da experiência de Pecola, menina negra cuja infância é marcada pelo alcoolismo do pai, pelas fugas constantes do irmão e pela ausência emocional da mãe, que dedica sua atenção à família branca para quem trabalha. A aparente inocência do material pedagógico de Dick and Jane pode ser lida sob a ótica de Roland Barthes. Em Mitologias, o autor francês se debruça sobre os signos triviais do cotidiano, como a imagem de um menino negro, em uniforme militar, na capa de uma revista , a fim de revelar os mecanismos sutis por meio dos quais o mundo se oferece como natural, quando, na verdade, é construção. O mito, para Barthes, é uma fala: tudo aquilo que adentra o campo do discurso pode, sob certas condições, converter-se em mito e, com isso, mascarar a realidade sob a aparência da normalidade.
Esta fala é uma mensagem, ela pode perfeitamente ser oral; pode ser formada por escritas ou representações: o discurso escrito, mas também a fotografia , o cinema, a reportagem, o esporte, os espetáculos, a publicidade, tudo isso é suscetível de servir suporte à fala mítica (Barthes).
O mito não nega o real, transforma-o, contudo, em episódios inocentes, aparentemente não ideológicos. O menino negro da capa da revista, supostamente, fazendo uma saudação à bandeira francesa corrompe os acontecimentos de 1955: a luta pela independência das colônias francesas na África. Desse modo, os que detém do discurso estabelecem a fala mítica a qual circula pela sociedade. No caso da revista francesa, não há conflito entre colonizado e colonizador, pelo contrário, há pacificidade nas colônias africanas e todos consideram-se pertencentes à França.
Afinal, qual é a relação entre Barthes, Pecola, Morrison e Dick&Jane? O material didático faz parte de um episódio inocente, de uma ideologia, a qual Barthes chama de anônima, que reforça o estereótipo do que seria a família ideal estadunidense, ou seja, branca. O capitalismo, a burguesia e o racismo estrutural determinam para eles e para nós a representação de mundo. Assim como o menino negro na capa da revista serve para reafirmar uma suposta integração racial enquanto encobre desigualdades estruturais, a cartilha funciona como um mito: é uma fala que, ao entrar no campo do discurso educacional, naturaliza um ideal de pureza. Dick&Jane, então, define para Pecola o que é ser uma família e, principalmente, o que é ser feliz. A felicidade está em ser de uma família branca de olhos azuis. Sem alternativas, ela recorre ao milagre divino:
Toda noite, sem falta, ela rezava para ter olhos azuis. Fazia um ano que rezava fervorosamente. Embora um tanto desanimada, não tinha perdido as esperanças. Levaria muito, muito tempo para que uma coisa maravilhosa como aquela acontecesse.
A estrutura social e a ideologia imposta, paulatinamente, destroi a autoestima e a possibilidade de construção da identidade de Pecola e a ensina a se odiar, e esta percepção torna a leitura dolorosa. No entanto, temas densos tendem a não serem palatáveis. Há textos e livros os quais são difíceis de digerir, é necessário, eventualmente, fechar o livro e olhar para o nada. Assim, Toni Morrison é bem sucedida ao narrar a destruição da existência de um ser vulnerável em um país com histórico escravocrata o qual normalizou, durante muito tempo, a segregação racial. Assim como foi dito no início do texto, a autora coloca o dedo em uma ferida bem aberta e gira o polegar incessantemente, ao ponto de seu leitor sentir-se desconfortável. Logo, lembro-me de uma carta que Kafka escreveu a um amigo:
Bom quando a nossa consciência sofre grandes ferimentos, pois isso torna-a mais sensível a cada estímulo. Penso que devemos ler apenas livros que nos ferem, que nos afligem. Se o livro que estamos a ler não nos desperta como um soco no crânio, para quê perder tempo a lê-lo? Para que ele nos torne felizes? […] Precisamos de livros que nos atinjam como a mais dolorosa desventura, que nos assolem profundamente – como a morte de alguém que amávamos mais do que a nós mesmos –, que nos façam sentir que fomos banidos para o ermo, para longe de qualquer presença humana – como um suicídio. Um livro deve ser um machado para o mar congelado que há dentro de nós.
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