Em vista do quarto centenário da cidade do Rio de Janeiro, em 1965, Dinah Silveira de Queiroz escreveu “Os invasores”, romance histórico no qual recorre à ficção para ocupar lacunas deixadas pela História e, assim, narrá-las a partir de perspectivas que sempre foram deixadas à margem, como as das mulheres.
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O evento histórico escolhido sucedeu-se em 19 de setembro de 1710, dia de São Januário, quando os habitantes de São Sebastião do Rio de Janeiro enfrentaram uma de suas tantas batalhas, a invasão francesa encabeçada pelo corsário Jean-François Duclerc, que tinha como objetivo saquear a cidade.
À época, o ouro descoberto no final do século XVII na região das Minas Gerais escoava pelo Rio de Janeiro em direção à Coroa portuguesa, tornando o local alvo de incursões estrangeiras. A frota de Duclerc havia sido recebida a tiros pelos canhões que guardavam a baía de Guanabara, sendo assim, ele decidiu seguir por terra e desembarcou em Guaratiba. Guiados por escravizados fugidos, os franceses marcharam para a cidade que os recebeu a pedradas e água fervente.
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De acordo com registros históricos, enquanto a população local improvisava no campo de batalha que viravam as ruas, sessenta mulheres se refugiaram no trapiche, um grande armazém à beira mar, e que também acabou servindo de abrigo aos franceses sobreviventes que recuavam diante da resistência da cidade. Aqui, entra Dinah, que com essa pequena informação, coloca em prática o que ela considerava a função da ficção no romance histórico: preencher o vazio deixado pela História.
Assim, o “se”, o que poderia ter acontecido, toma conta do romance enquanto a autora passa a narrar quem eram aquelas mulheres, o que elas vivenciaram em meio aos tambores, ao blém-blém dos sinos, à gritaria e aos tiros que soavam cada vez mais perto, e como lidaram com os líderes dos corsários, Duclerc e De Boiron, que ali buscaram também abrigo. É através dessas personagens femininas que acompanhamos o que se passava não apenas no trapiche, mas também o pandemônio instaurado na cidade. Elas tinham uma janela, que a muitas era negada a mera aproximação em dias comuns, e a utilizaram para terem notícias das ruas e através dos diálogos, trazê-las até nós, leitores. É assim que vemos a batalha.
Temos a bela dona Inês, cunhada do governador e alvo das más-línguas da cidade; Daniela, ingênua e “cabeça dura”, nas palavras da própria mãe Beleguina, viúva, e que, após buscar a filha no convento no qual morava, viu no trapiche a última opção diante da aproximação dos invasores, e Luisita, com pai francês, a única que dominava o idioma do inimigo, servindo de tradutora, o que deixou margem para que fosse vista como aliada por uns e traidora por outros.
Fora do trapiche, estão personagens históricos, como o governador Francisco de Castro Morais, que acabou entrando para a História como “o Vaca” após a decisão de manter-se entrincheirado aguardando uma invasão por mar que não chegou, não naquele ano, ao passo que a defesa das 12 mil almas que habitavam a cidade foi realizada por estudantes, padres, alguns militares e pela população em geral.
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“Desde que o povo recebera, praticamente só, o invasor, não se soube como, bem se começou a mugir engraçado, mencionado que fosse o nome de Dom Francisco de Morais. A cidade misturava seu riso áspero ao sangue e às lágrimas.
– Dom Francisco se avacalhou! Muuu!
Daquele dia em diante, ele seria chamado O Vaca…”
Mais à frente, nova menção ao apelido:
“Ao longe, ouviam-se tocadores de berimbau e alguém cantava, próximo, sucedeu um muuu eloquente.
– Senhor tenente – acudiu a moça animada –, o senhor governador está chegando”
Tais passagens dão um tom jocoso ao romance e elas não estão sós. Então o que poderia ter um ar épico, adquire uma comicidade, já que a vitória veio aos trancos e barrancos e com um pedaço de anágua como bandeira de paz.
Esse ar cômico permeia toda a narrativa através do deboche, de situações inusitadas, canções na boca do povo, do ludíbrio com bandeiras, badaladas de sinos e até cafuné, essa palavrinha tão nossa. Tal escolha traduz o que a autora entendia pelo “espírito carioca”, uma gente que utiliza do humor como forma de crítica social, que mistura o riso às lágrimas.
O destaque de tais idiossincrasias lembrou-me “O Pasquim”, jornal fundado no Rio de Janeiro em 1969, período da ditadura militar, e que utilizava a irreverência, o humor e a ironia como forma de contestação. Algo na linha dessa visão que Dinah traz da alma da cidade em “Os invasores”.
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A procissão com ares de festa após a vitória carrega, inclusive, muitos elementos do que no futuro consistiria o carnaval, hoje parte da cultura do Rio de Janeiro. A cidade que para, as regras e hierarquias que são sustadas, a cantoria muito próxima das marchinhas, as fantasias, os elementos religiosos, etc.
Nesse sentido, lembremos-nos da citação do professor Luiz Antonio Simas, pesquisador do tema: “A gente não brinca, canso de repetir isso, e festeja porque a vida é mole; a turma faz isso porque a vida é dura.”.
Na festa, no carnaval, há essa falsa sensação de que todos são iguais, assim como na dura luta que se seguiu a invasão francesa de 1710. A população local consistia também de escravizados, que atuaram ativamente tanto na defesa da cidade, quanto no ataque; no início da resenha há uma referência ao fato histórico de que Duclerc foi guiado por escravizados fugidos até a cidade, assim como no romance há escravizados que ajudam os franceses no trapiche.
Dinah não apaga essas figuras, mas também não dá destaque a elas. Existem, sim, trechos que expõem a violência a qual essas pessoas eram submetidas e elas são tratadas como sujeitos ativos, como colocado acima, mas o protagonismo feminino que vem cobrir a lacuna tradicionalmente deixada pela História é branco.
É dito no posfácio, de Ana Cristina Steffen, pesquisadora da obra de Dinah, que a autora queria com o livro trazer ao mesmo tempo a história do Rio e o temperamento da cidade nas páginas de “Os invasores”. Sangue e festa, sagrado e profano, em um texto irreverente, mas que traz as marcas de quando foi escrito e do período no qual a história se passa, algo que a edição teve a atenção e o cuidado de alertar logo no início.
Sobre a autora:
Dinah Silveira de Queiroz nasceu em 1911, na cidade de São Paulo, em uma família profundamente dedicada às letras. Seu primeiro livro, Floradas na Serra, lançado em 1939, tornou-se de imediato um best-seller — a primeira edição esgotou-se em pouco mais de um mês. A obra de Dinah abrange romances, crônicas, contos, artigos e dramaturgia — e a ficção científica nacional teve na autora uma pioneira, uma vez que foi das primeiras escritoras a publicar dois livros de contos nesse gênero: Eles herdarão a terra (1960) e Comba Malina (1969). Além de Os invasores, os seguintes livros de Dinah estão no catálogo da Editora Instante: A muralha (2020), Floradas na Serra (2021), Margarida La Rocque (2022), Dinah fantástica (2022) e Verão dos infiéis (2023). Faleceu em 1982, aos 71 anos.
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Fontes:
“Os invasores”, Dinah Silveira de Queiroz. Editora Instante, 2024;
“O corpo encantado das ruas”, Luiz Antonio Simas. Civilização Brasileira, 2019;
“Jamais haverá uma última palavra: uma poética da ficção histórica de Dinah Silveira de Queiroz”, Ana Cristina Steffen. Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, 2023.
“O papel das invasões francesas nas estratégias de reestruturação da defesa do Rio de Janeiro no século XVIII”, Jorge Paulo Pereira dos Santos. Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2009.
Revisado por Dáleth Costa