Entre 1946 e 1969, Fernando Sabino e Clarice Lispector trocavam cartas incessantemente repletas de afeto e atenção um pelo outro. Estas foram reunidas no livro Cartas Perto do Coração, organizado originalmente em 2001 pelo próprio remetente-destinatário das trocas, o autor de obras célebres como O Encontro Marcado, O Menino No Espelho e O Grande Mentecapto, conhecido como o “escritor menino”. Em 51 correspondências, ambos discorrem sobre suas vidas, seus sonhos e rotina, mas, acima de tudo, sobre aquilo que compartilham visceralmente: o ofício do escritor.
Nos anos 80, o crítico literário e filósofo Roland Barthes apresenta o conceito de “morte do autor”, que pauta a investigação de uma obra literária de maneira a afastar radicalmente o autor de sua obra. Uma análise em que a literatura não deveria apresentar vestígios da voz de seu criador – como um território neutro e inabitado.
Apesar de soar radical, parece importante considerarmos que, de fato, uma biografia não pode reduzir a obra, torná-la um produto da vida de um autor, tão somente, e é diante dessa ideia que Barthes cria um embate. No entanto, Barthes quase cai por terra quando leio as correspondências de Fernando Sabino e Clarice Lispector na obra Cartas Perto do Coração.
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Foi analisando as diversas críticas, ideias e processos que envolvem o fazer literário de ambos os escritores, que se fazem presentes nessas íntimas, porém cordiais e distantes, cartas, que Barthes perdeu força. Segundo ele, não há mistérios a serem desvendados na vida de um autor que possam desnudar o significado de um livro.
No entanto, não pude me contentar em somente ler as correspondências, mas, fiz ainda o exercício de relacionar as discussões que ali eles levantam às obras desses autores, que de modo algum podem ser distanciadas completamente de suas próprias vidas e contextos.
Se tratando de Clarice, sabe-se que os limites entre ficção e realidade nunca foram respeitados, ou sequer considerados como algo de mínima importância. Assim, ler suas cartas mais parecia ler um de seus livros de crônicas. No entanto, o fato de dirigir-se a um amigo, torna esse limite ainda mais invisível. Há algo extremamente voyeurístico em ler as cartas de nossos autores prediletos, porém a leitura das cartas de Clarice e Fernando permite ao leitor não apenas observar, mas participar do processo criativo
É irresistível encontrar um eixo entre a vida pacata e decepcionante de Sabino em Nova Iorque com a criatividade e fantasia de seus textos, relacionar as agonias de Lispector na Suíça com as agonias de sua linguagem truncada.
Cartas de Sabino para Clarice
Com um grande tom de leveza e afeto, ambos encontram nas correspondências a maneira de lidar com a distância do país natal e com a solitude incurável do trabalho da escrita, que exige e exige, mas nada dá em troca além de dúvida. Em uma carta datada de 6 de julho de 1946, Sabino exprime a Clarice seu descontentamento com um novo livro, sua incapacidade de gostar do que escreve ou até de escrever. Nessa situação, seu texto ganha um tom questionador e, ao mesmo tempo, contemplativo com relação à maneira como ele enxerga a vida e seus deveres como escritor.
“Se te mandam quebrar pedra ou fazer um móvel, a inteligência vai te angustiar na procura do meio mais certo, mais eficiente e mais perfeito de quebrar ou de fazer. Mas a insaciedade que te faz artista vai te atirar numa procura muito mais afetiva, digna e criadora: saber o que é uma cadeira, e que proveito os outros tiraram da pedra que você vai quebrar.”
Fernando Sabino para Clarice Lispector em 1946
Ele conclui dizendo que vendeu seu carro por uma merreca e não ia no dentista havia semanas, vivia um momento difícil fora do país e imaginava que sua amiga sentia o mesmo. Por fim, ele diz o nome do livro em que estava trabalhando: Os Movimentos Simulados. O livro, escrito na década de 40, acabou sendo publicado somente no ano de 2004, ano da morte do escritor.
Cartas de Clarice para Sabino
Clarice, nas respostas às queixas de Fernando, parecia sentir extrema empatia e compreensão, deixando claro que também passava por tudo aquilo. Em suas correspondências, ambos enviam cópias de seus trabalhos e buscam encorajar um ao outro enquanto contam sobre situações de suas próprias vidas.
“Nandinho”, que carta boa a sua. Estou entendendo tão bem o que significam os movimentos simulados. Trabalhe bastante, Fernando, dê um “tempo” largo aos movimentos simulados. O personagem é “corajoso”? (não sei como dizer o que quero dizer sob a palavra “corajoso”). Gostaria que ele fosse.
Clarice Lispector à Fernando Sabino em carta datada de 14 de agosto de 1946.
Toda essa discussão literária pareceu, a mim, como o momento em que o poeta perde sua auréola na rua: a literatura de ambos inconclusiva, questionada e mexida.
Em 1956, Sabino envia à Clarice uma nota de leitura ao manuscrito de seu livro A maçã no escuro. São rasuras, cortes, críticas, tudo feito com cautela e minúcia, talvez até certa frieza.
O livro, que ficou anos fora do mercado, retornou repleto de fotos, cópias de cartas originais, notas de rodapé e anexos, tornando a leitura ainda mais documentária e interessada pela vida de fato dessas figuras que se escondem em textos de decifrações mil. Na seção da nota de leitura, há cópias do texto original datilografado, tão rasurado quanto um rascunho, um texto aberto em mesa cirúrgica.
Ler Cartas Perto do Coração é deixar-se levar pela intimidade e pelo afeto entre duas pessoas das quais pouco se conhece além de seu produto, é abrir uma porta que se emperra e não pode mais ser fechada, pois passa-se a compreender seus incompreensíveis, entrar em suas linguagens