Tive dificuldade para escrever um texto que fosse capaz de abarcar todas as nuances de O corpo de Laura, e isso se deu por vários motivos. O primeiro deles é porque a autora, Laura Redfern Navarro, é alguém cujo trabalho admiro demais. O segundo, e aí sim mais diretamente ligado ao livro, é que acredito que seria necessário muito tempo convivendo com a obra para compreender (no sentido de “entender” e “abranger”) todos os pormenores de sua poesia — a quantidade de páginas da edição, inclusive, engana o leitor: cabe (o corpo de Laura e) um mundo inteiro nas 140 páginas do livro. Não por acaso, inclusive, O corpo de Laura venceu, em primeiro lugar, o Edital de Publicação Inédita em Poesia do ProAC.

Uma crença que carrego, enquanto leitora há um tempo considerável, é que os livros chegam até nós pelos caminhos mágicos e tão próprios da arte, e não o contrário; e assim sinto que O corpo de Laura, publicado pela Mocho Edições, me encontrou na hora certa. Com isso, devo acrescentar que esse texto é possivelmente o que mais difere dos que escrevi anteriormente, pois assim foi a leitura desses poemas diante das demais que concluí em 2024.
O que a autora apresenta em sua poesia é raro e excepcional, de forma que eu não conseguiria apresentá-la numa estrutura previamente idealizada tal qual a técnica de escrita de textos críticos que me foi ensinada ao longo desses anos; não, aqui preciso de uma liberdade maior, preciso que não haja delimitações entre eu, a página do word, o leitor e o corpo de laura; preciso que sejamos um só, ainda que sigamos indizivelmente separados. Tendo introduzido essas questões, podemos, finalmente, observar o corpo de Laura e O corpo de Laura.
Laura Palmer e laura: realidade e ficção se esbarram
2024 marca 35 anos desde que Laura Palmer, a célebre personagem de Twin Peaks, criada por David Lynch e Mark Frost, foi assassinada. Ainda que pertencente à ficção, Laura é uma figura marcante sobretudo pelo mistério que a cerca na narrativa do seriado. Logo no primeiro episódio, sabemos que a querida Laura Palmer estava morta, encontrada enrolada em um plástico. É no filme Fire walk with me que o telespectador finalmente descobre não apenas quem matou a garota (o que era a maior incógnita da série), assim como havia muito da vida de Palmer que não era conhecido pelos demais.
Dada como uma jovem perfeita, uma adolescente de 17 anos retratada como uma daquelas garotas populares de filme dos anos 2000, passamos a cavar as entrelinhas da personagem nesse filme, quando então nos é escancarado que Laura lidava com problemas seríssimos que envolviam drogas e, inclusive, casos recorrentes de abuso sexual que se iniciaram aos seus doze anos.
É através da busca memorável por respostas relacionadas à Laura que acabamos criando um elo forte com a personagem – e esse é o caso de outra Laura, a Redfern Navarro, cuja obra tem evidente e excitante relação com a jovem Palmer. O mais interessante nisso, nessa coincidência dos nomes da autora e da personagem, é que se cria uma atmosfera capaz de mesclar ambas as figuras. Palmer é Redfern Navarro, e vice-versa.
Leia também: “O Corpo de Laura”: Laura Redfern Navarro recupera experiência de eu-lírico feminino ferido
E, conforme avançamos na leitura, percebemos que o jogo de ideias e palavras se reflete numa linguagem única; numa escrita que nos puxa para dentro do corpo de laura. É impossível ser mero leitor diante dessa poesia; nos tornamos vítimas dos males que assombram os versos e a própria laura; o trauma de laura passa a ser o nosso mais temeroso problema; as dores e frustrações dela são também as nossas mais duras decepções.
minha mãe fala que sabe
que estive com ele
quando apareço em casa
com as mãos esfareladas
porque pareço assim
como se estivesse comendo
o pão que o diabo amassou
com as mãos nas costas
(trecho de “Sobre eu & meu amante”)
Dos fragmentos, um corpo
O corpo de laura é explorado pouco a pouco, fragmento por fragmento. Dessa forma, os poemas são dispersados de maneira nada aleatória, separados em cinco partes: I. Flutuante, II. Inter/rompida, III. Fúria; IV. Da linguagem, V. O corpo de laura. Na primeira parte, “Flutuante”, acompanhamos a infância de laura, que logo cedo se depara com um mundo assombrado por homens grotescos que a assediam por estar usando uma calça legging, por exemplo. Não apenas isso, mas também passa a descobrir os mistérios de seu próprio organismo: chega o momento da primeira menstruação, um acontecimento narrado no sensível poema “Menarca”:
31 de dezembro
virar o anogota de sangue
pingandotingindo
a calcinha
b r a n c aserá que isso [mancha]
o ano novo
também?”
(poema Menarca)
Enquanto mulher, lembro do meu constrangimento e desespero de quando a minha primeira menstruação desceu, e assim me compadeci de laura. O que se passa na cabeça de uma criança quando abaixa as calças e vê sua calcinha inteiramente tingida de sangue? Manchar a roupa é também uma forma de manchar o próprio corpo. Naturalmente, a primeira menstruação já é um grande divisor de águas na vida de uma garota, mas sinto que esse acontecimento logo no ano novo é ainda mais gritante: manchar o branco da roupa, que simboliza a prosperidade, é uma imagem muito forte, sobretudo para uma pequena menina que pensa e reflete demais.
Passando para a parte “Inter/rompida”, o leitor de início lê “Um maiô com estampa de sorvete”, que eu gostaria de comentar sobretudo por conta da utilização de um termo que me lembrou de Lila Cerullo na Tetralogia Napolitana, de Elena Ferrante. Nos versos do poema, lemos: “quando de frente para o espelho o corpo de laura é amorfo é gorducho é opulência”. Ao pensar nesse “amorfo”, quase de imediato me veio à cabeça o que a personagem de Ferrante nomeou “desmarginalização”, que Taís Bravo descreve, em sua resenha de “A vida mentirosa dos adultos” (também de Elena Ferrante) como: “um estado de mal-estar em que tudo que as constitui mostra-se subitamente destinado a se perder. É um contato dilacerante com a perda.”
Sinto que o corpo amorfo de laura não se dá apenas pela menina se sentir gorducha. Após assédios e outros acontecimentos intensos demais para uma criança e pré-adolescente digerir facilmente, acredito que é esperado esse tal estado de mal-estar que se formou a partir da perda de sua inocência pueril.
Creio que a terceira parte, “Fúria”, carrega a maior carga de violência, como o próprio nome já sugere. Aqui, os poemas trarão Laura Palmer e laura (em letra minúscula, vale lembrar) juntas e separadas, a depender do contexto. Trata-se de uma parte em que percorremos os olhos azuis da falecida personagem de Twin Peaks, bem como a preparação para um baile de debutantes, que, como sabemos, é uma cerimônia tradicionalmente realizada para expor meninas novíssimas para a sociedade. É também nessa parte que as estrofes se encarregam de tecer pensamentos e registrar acontecimentos igualmente dolorosos, como episódios de terror noturno e paralisia do sono – permeados, vale pontuar, por outros títulos que dissecam sonhos e suas interpretações.
As duas últimas partes, “Da linguagem” e “O corpo de Laura”, se entrelaçam de forma intrínseca: a linguagem parece dar forma ao corpo de Laura, ao mesmo tempo em que é em Laura que a linguagem encontra seu ponto de partida. Ao observarmos esse aspecto com atenção e analisarmos brevemente a leitura até então, percebemos que todos os fragmentos que compõem esse corpo — reunidos na última parte da coletânea — foram, desde o início, moldados e construídos pela linguagem.
o lado de Dentro do Corpo é precisamente onde começa a Linguagem
— antes das gestações — ele pode gestar algo que é meu —
antes — a minha palavra;
Concluindo esse texto, devo alertar o leitor: vocês ainda ouvirão muito sobre Laura Redfern Navarro.
Sobre a autora

Laura Redfern Navarro (2000) é aquariana, poeta e jornalista graduada pela Faculdade Cásper Líbero. Desde 2019, produz conteúdo sobre literatura e criatividade na plataforma @matryoshkabooks. Pesquisa corpo e linguagem nas vicissitudes do feminino. Foi aluna do Curso Livre de Preparação do Escritor (CLIPE-Poesia) em 2021. Participa da equipe de poetas do portal Fazia Poesia. Em 2022, venceu, em primeiro lugar, o Edital de Publicação Inédita em Poesia do ProAC com O Corpo de Laura.
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