Ao ler o primeiro romance da paulistana Suzana Amorim, O peito oco, publicado pela Editora Penalux, me lembrei de Hélène Cixous. Em um dos trechos que mais me tocaram a respeito da literatura escrita por mulheres, a autora francesa diz, em seu O riso da medusa (Ed. Bazar do tempo):
“É preciso que a mulher se escreva: que a mulher escreva sobre a mulher, e que faça as mulheres virem à escrita, da qual elas foram afastadas tão violentamente quanto o foram de seus corpos; pelas mesmas razões, pela mesma lei, com o mesmo objetivo mortal. É preciso que a mulher se coloque no texto – como no mundo, e na história -, por seu próprio movimento.”
Foi com esse chamado que me vi lendo o romance de Suzana Amorim sobre uma personagem no puerpério. O relato, em 1ª pessoa, mostra o turbilhão de emoções que surgem após o nascimento de um bebê da perspectiva de quem mais é impactado na família, tanto fisicamente quanto emocionalmente. Como uma forma de intensificar os contrastes com a nova vida, a personagem resgata episódios do passado. Assim, nesse ir e vir do tempo, ela busca compreender quem foi, quem é e o que ela será no futuro. Seja como mãe ou como mulher.
A maternidade como vazio em O peito oco
A narrativa construída por Suzana Amorim é enxuta. Essa escolha pela concisão, por parte da autora, me pareceu reflexo da própria condição de exaustão da personagem. A meu ver, quem precisa cuidar de um novo ser humano sem saber ao certo o que fazer durante horas e horas, ininterruptamente, não tem capacidade de formular o que passa dentro de si.
Quando a personagem o faz, o espanto sobre as mudanças internas e externas são repletas de melancolia e ironia, num esforço de manter-se lúcida sobre a realidade vazia ao seu redor. Como quando, ao relatar o processo de suturar a laceração do seu parto, ela relata a conversa banal de médicos e enfermeiros sobre o final de semana: “Deve ser assim no trabalho de um coveiro. Ou de um repórter que cobre a guerra. Há de se ter, ou pelo menos demonstrar ter, alguma naturalidade diante da brutalidade dos grandes acontecimentos.”
Mais adiante na história, a falta da mãe, o estudo interrompido, a ausência do pai, o amor que não se materializou, o marido com sua figura coadjuvante: tudo o que não foi bem resolvido do passado volta para prestar as contas com o presente. Como a maternidade traz seu próprio ‘oco’, as demais relações humanas travadas pela personagem revelam outros contornos desse sentimento.
A amizade como outro oco
Uma das histórias contadas é a de amizade com um colega durante o período universitário. Enquanto vemos a personagem se reerguer do luto de perder sua mãe, enfrentar um curso com o qual não tem nenhuma identificação e montar um novo lar para si própria, o amigo se torna uma espécie de família. Na presença dele, ela se sente mais completa, a ponto de querer torná-lo parte de si.
No entanto, essa amizade também evidencia um vazio diferente, mas igualmente poderoso: o da busca por laços familiares e afetivos em lugares inesperados, que nem sempre se sustentam no longo prazo. O desfecho dessa história me deixou sedenta por mais. Como assim ele simplesmente se muda? Nada mais acontece?
Mas, quando recapitulo as minhas histórias frustradas de paixão, lembro que elas tiveram fins insossos, diferentes daqueles que a gente vê em séries e filmes. O estímulo para sentirmos o mundo em excesso talvez nos deixe mal-acostumados com aquilo que ocorre, de fato, nas relações reais.
O vazio de todos nós em O peito oco
Elaborar a sensação de vazio, explicitada no próprio título, é o grande trunfo de O peito oco. Suzana Amorim nos mostra que administrar essa falta, inclusive em momentos inesperados, como a maternidade, é parte fundamental de nos tornarmos emocionalmente responsáveis por nossas vidas. Não há nada, nem ninguém, capaz de preencher completamente esses vazios – só nos resta conviver com eles.
Ao transformar essa experiência em literatura, a autora responde ao chamado de Hélène Cixous: ela escreve, e escreve como mulher, expondo suas lacunas com a coragem que a literatura exige.
Sobre a autora
Suzana Amorim é psicanalista, membro do Departamento de Formação em Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, formada em Psicologia pelo Mackenzie e em Teatro pelo Macunaíma. Já trabalhou na área hospitalar e corporativa e, desde 2018, atua clinicamente em consultório particular, com atendimentos online e presencial em São Paulo, capital. O peito oco é seu romance de estreia na literatura.