Guy Debord falava sobre a sociedade do espetáculo, Byung-Chul Han fala sobre a sociedade do cansaço. Já Dido Eliphas Leão de Alencar, escritor e médico residente em Patologia, utiliza a ficção para falar de uma sociedade egóica e obcecada por dispositivos geradores de silêncio que nos afastam e nos desconectam de nossa natureza pensante. Estamos falando de “Pululante de formigas”, livro de estreia de Dido, publicado pela Ases da Literatura em 2024. Penso, logo existo, não é mesmo? Talvez tenhamos trocado o penso por compartilho. Reconhecem?
Em “Pululante de formigas”, acompanhamos recortes da vida de alguns personagens que se movem em função da frustração, da angústia e dos questionamentos com relação à vida e à condição humana. Há um personagem principal sem nome que protagoniza e narra o livro quase que por completo. Com raras exceções, o ponto de vista desse personagem/narrador é interrompido e quando ocorre é geralmente pelo próprio autor, que aqui e ali interage com o leitor, ou de seu único amigo, Astolfo. Astolfo é uma figura que não fala e leva uma vida à margem da sociedade e, assim como nosso amigo sem nome, é incapaz de fugir de seus pensamentos, por isso a tolerância de um ao outro.
Contudo, nos momentos de conversa apenas nosso protagonista fala, muitas vezes parece vomitar palavras em cima de Astolfo, que ouve e até concorda internamente.Também temos Leopoldo, uma das raras figuras com a qual nosso protagonista consegue conviver, mas cujos pensamentos só nos cabe fantasiar.
Uma boa parte do livro se estrutura em formato de um monólogo dividido em capítulos que não exatamente seguem uma ordem cronológica, mas acompanha a caótica e surreal mente do personagem principal sem nome, que apresenta e se ressente do mundo à sua volta, além de nos conduzir por seus encontros com Adolfo e e Leopoldo. Como nos lembra Mary Shelley, a invenção consiste em criar a partir do caos e é o que Dido procura fazer.
Brincando de Deus com esses personagens em uma “versão caricaturizada” da sociedade contemporânea, Dido escreve a partir de um futuro próximo, distópico, de uma realidade na qual reina a ode à ignorância. Nela, o pensamento crítico precisa ser reprimido através da máxima exposição aos tais dispositivos geradores de silêncio desde tenra idade.
“Criar o silêncio não é exatamente um processo simplista, até por serem dispositivos ruidosos, o silêncio surge dentro da sua cabeça, aquela voz, aquilo que te espreita e observa nas sombras, acaba calado com maestria. (…)
Todos fugimos das sombras, do lado escuro da força. Complexo é encarar nossos defeitos e falhas, não obstante necessário. Não esqueça que segue fundamental espairecer. Os geradores de silêncio e o excesso de desconexão com o concreto causam danos de difícil reversão.”
Na introdução, o autor declara que “tecnologia, velocidade de dados, tempo de tela e até uma disrupção do ego” estruturam nossa realidade, o que o levou a questionar em que direção essa sociedade supostamente tão evoluída estaria progredindo. Foi a partir daí que surgiu a ideia de exacerbar algo existente, colocar em evidência tais características para compartilhar as frustrações do nosso tempo. Assim nasceram os dispositivos geradores de silêncio, que se assemelham aos nossos celulares, tablets e computadores.
“A era dos geradores de silêncio, dispositivos capazes de derrotar a alma e gerar conclusões que emergem de fontes duvidosas. Os ignorantes ganharam voz, espalhando o desconhecimento, o falanstério da pseudociência.”
Nesse contexto, para o autor, nós, seres humanos, somos cada vez mais como formigas, levanta um dos personagens de “Pululante de Formigas”, analogia que, inclusive, permeia toda a obra. Seguimos uma programação pré-estabelecida sem qualquer questionamento e repleto de conformismo, logo nossa espécie, tão orgulhosa de sua capacidade de raciocínio.
Porém, Dido não deixa de fazer uma autocrítica, pois essa espécie – que somos também nós – é a mesma que já teve a morte dos seus pares como diversão. A política do pão e circo, que incluía assistir homens se digladiarem até a morte, enforcamentos e decapitações, já foram formas de entretenimento, afinal.
Ele se pergunta: a busca por dopamina, essa substância tão necessária e ardilosa, estaria por trás de nossa incessante busca pelo prazer? O espetáculo de uma cabeça rolando ali, um vídeo de 30 segundos de pura desinformação performática acolá, tirando o sangue, qual a diferença? Teríamos evoluído? O que é evolução?
Questões pipocam por todo o texto e ecoam na cabeça de nós, leitores, que elaboramos outras questões e estabelecemos outras conexões.
Os ensaios da autora norte-americana Jia Tolentino em seu livro “Falso espelho” me vieram à cabeça, por exemplo. O egocentrismo, o “eucentrismo”, a hiperconectividade que teriam transformado as redes sociais em um palco no qual performamos um “eu” que muitas vezes nem sabemos mais qual é, mas que pode, inclusive, ter virado fonte de renda. Esse “eu”, aqui em “Pululante de formigas” é, na verdade, um “eu” de Schrödinger. Um “eu” vivo e um “eu” morto. O “eu” com seus princípios, gostos, pensamentos e que foi enterrado, amordaçado, para que o “eu” criado, inventado, invejado, emergisse para atuar na peça teatral que teria virado nossas vidas em busca de micro-satisfações.
A energia física e mental necessária para desenvolver as ideias, pensar, refletir e etc, de acordo com nosso personagem principal sem nome, é toda gasta em manter essa persona fabricada, por isso “todo compartilhamento é tomado como verdade sem o menor questionamento.” Não há espaço, tempo e energia para o pensamento crítico, o que resulta em um mundo abarrotado de desinformação. Esse ponto é algo caro ao autor.
A experiência como médico também atravessa a escrita de Dido que faz referências a isso durante o livro. Por sinal, um dos personagens centrais do livro, nosso amigo sem nome, é descrito como um “mecânico refinado” que parece uma espécie de fusão entre cientista e trabalhador:
“…eu fui um dos tolos que trilhou o caminho para adquirir conhecimento. Não bastasse isso, percorri um dos mais árduos, fui obrigado a entender fundamentos envolvendo reorganizar cadeias químicas, manejar meios hidráulicos mediados por componentes biológicos, entre outras coisas de igual complexidade.”
A perspectiva de Dido como médico, inclusive, nos força a olhar cenas anatomicamente, dissecando-as e a seus personagens até as entranhas, como em nesse trecho em uma parte bastante dramática da narrativa:
“O tórax, belo e nobre tórax, projetado pela mãe natureza para proteger seus órgãos internos, tão importantes para a manutenção da vida. A pele é a primeira a ser atingida, firme, porém com limitações em sua resistência, ainda mais contra objetos tão abrasivos, rasga-se em ferimentos com bordas irregulares, expõe tudo que está abaixo. A gordura não oferece resistência, abriga alguns vasos sanguíneos que passam pela região. A gordura, tão friável, arrancada pelo golpe, levando junto pequenas veias e artérias. O corpo projeta gotas de sangue para os lados. Perdendo a gordura, chegamos no nosso arcabouço ósseo, foco nas costelas, unidas por músculos que os recobrem, fornecendo resistência, permitindo nossos movimentos (…).”
Retomando a desinformação como ponto de destaque para o autor, podemos notar uma certa frustração em face da era de fake news que vivemos hoje em dia, uma insatisfação que vaza pela boca de nosso personagem principal:
“ — Não entenda errado. Acabo me frustrando pela incapacidade de entendimento de alguns, em especial aqueles que preferem confiar em suas próprias interpretações, ainda que leigas, baseadas em informações pela metade que adquirem de fontes duvidosas.”
Há nele um misto de desprezo e inveja. A sensação do conhecimento como uma maldição e da ignorância como uma benção, mas ao mesmo tempo há também um desejo de revanche, de vingança, como na gráfica passagem a seguir:
“Não é possível deixar de questionar, e o pior, é triste não ter nenhum tipo de crença que traga a convicção de que este indivíduo será punido, torturado, tendo a carne rasgada, os ossos esmagados, os órgãos destruídos, transformado lentamente em um amontoado de carne em meio à agonia, uma dor lancinante, embalada, como uma balada romântica, por gritos de horror tão vívidos que criariam figuras cintilantes no ar e seriam desfeitas em poças se sangue, tristeza, amargor e arrependimento de novo e de novo por toda a eternidade como punição para a sua estupidez e a incapacidade de sair de seu pequeno mundo.”
Eu, particularmente, adoro personagens resmungões e rancorosos. Há, por exemplo, o personagem também sem nome de “Memórias do Subsolo”, de Fiodor Dostoiévski, martirizado pelas próprias contradições. Aqui, em “Pululante de formigas”, o tormento de certa forma também vem do ato de questionar, de buscar respostas. Tal característica é o que chama a atenção de Astolfo que apenas ouve tudo que seu amigo tem a dizer sem emitir nenhuma resposta, mas que aqui nos brinda com uma amostra da sua perspectiva:
“Especialmente hoje eu o vejo mais quieto, parece menos inspirado que o habitual, compreendo, nem todos os dias estamos funcionando de maneira a questionar tudo e todos.”
Esse comportamento de levantar questões o tempo todo deixa a narrativa muito introspectiva, formando uma espécie de labirinto da mente e da alma humana e que com um senso de humor peculiar e algumas interjeições do autor ao longo do texto, puxa o leitor a se engajar nas temáticas e a questionar a própria realidade.
Não há respostas ou conclusões definitivas, mas sim uma constante busca por sentido, por propósito, que revela, conforme a história avança, nossa fragilidade, nossos conflitos, nossas angústias, mas também nossa bestialidade.
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Sobre o autor:
Dido Eliphas Leão de Alencar é médico, com especialização em Patologia, e uma visão curiosa sobre os mistérios da existência humana. Autor de Pululante de Formigas, uma ficção contemporânea que mergulha nas profundezas das contradições humanas, Dido combina sua formação científica com algum grau de sensibilidade literária. Sua escrita, marcada pela exploração de dilemas contemporâneos e pela busca por significados. Participa também de antologias de poesia e crônica. Entre ciência e literatura, ele constrói um espaço onde palavras e conhecimento se entrelaçam para dar vida a histórias.