“Para tudo que morre e nasce, o interlúdio é o presente infinito”: poesia-elétrica de Úrsula Antunes busca a poesia no choque das frestas

“A cura é o caos”. Assim diz Úrsula Antunes no poema 5 e 16, primeiro de seu livro “Para tudo que morre e nasce, o interlúdio é o presente infinito”, publicado pela Editora Mondru em 2024. E para nós, leitores e amantes de poesia, fica o espanto de entender e esmiuçar o que todas e tantas dessas palavras querem dizer. 

O filósofo Roland Barthes escreveu em seu livro “A preparação do romance” da importância da anotação para a escrita. Para ele, o romance estaria mais na anotação do que no próprio livro, de modo que é no guardanapo, no canhoto do cinema ou nas palavras do bloquinho que estariam o gesto mais radical de toda obra, enquanto que o livro é o produto, o resultado final organizado, produzido e capitalizado, porque não dizer, da anotação. 

Acredito que o mesmo se poderia dizer do gesto criador de Úrsula, em procedimento que ela mesma aponta no título. Ora, estamos de cara com uma poesia que se enuncia enquanto viva – ou seja, aquela que morre e nasce – como essencial e brutalmente imersa de um “presente infinito”. E nisto cabe muita coisa porque ela mesma diz que este infinito que é o instante é apenas um interlúdio, ou seja, uma pausa entre a verdadeira música, aquela que está antes e depois de tudo o que há. 

Parece complexo, mas isso vai ficando cada vez mais claro quando adentramos sua poesia, como traçado também no prefácio por Lucas Marchetti, para quem “a poesia não reside apenas nas palavras escritas; ela se encontra nas pausas entre as letras”, ou seja, “nas entrelinhas de um poema”. 

Porém, enquanto lia os poemas de Úrsula, não tinha ainda me dado por satisfeito. Entender a poesia como anotação, como intervalo, como interlúdio ainda era pouco. Eu gostaria de entender do que ela estava falando quando dizia isso, de que tipo de intervalo ela pretendia escrever. Até que encontrei isto em uma dupla de poema das páginas 36 e 37, o primeiro deles chamado “Eletricidade” em que ela diz:

As ondas sonoras provocadas
pela sua voz
agitam o caos aqui dentro
em vão, tento repelir
a imagem do seu sorriso. (…)


Tocar um pouco da juventude 

é como sentir uma eletrizante 
vontade.


Isso já não é mais pra mim. 

Na página anterior, em Élan, ela anota:


A escuridão é só uma desculpa
para enxergar você com a pele
Atmosfera quente do
Nosso vento solar
Eu fecho os seus olhos
Para você sentir
Que tocou
Onde ninguém alcança

Chegamos então ao procedimento poético de Para tudo que morre e nasce, o interlúdio é o presente infinito: poesia, para Úrsula, aparece como uma fagulha, os segundos do fósforo riscado, o instante do movimento elétrico que se dá entre uma coisa e outra. Eletricidade, ela diz em um quadro são as ondas sonoras que agitam o caos interior. Élan, ela diz no outro, que a escuridão serve para a pele enxergar primeiro.

Como uma poesia-elétrica, Úrsula está indo em busca desses instantes poéticos da vida que, para ela, compõem esse presente infinito, interlúdio entre duas não existências. Por isso, também, que “cura é caos”, uma vez que o oposto do caos, ou seja, a paz, traria o adoecimento pelo fim das fagulhas. 

Leia também: “Desilução de ótica: contos e aparições”, de Úrsula Antunes, traz novos ares para a literatura contemporânea de horror

Escrever, ou melhor, o ato poético, é mesmo esta busca, e isto se dá tanto na procura, como em Aether:

Onde é possível achar o fim do começo
no começo do fim do início do eu?
É que me perdi, moço, sumi de mim

Quanto em Oscuridad:

Só quem 

Ama a escuridão
Consegue enxergar
As partidas
As partículas
O desintegrar
Da luz

Que é vida
Em movimento

E para se/nos fazer entender, ela recupera, incorpora, se deixa contaminar também por escritas e versos de grandes poetas e escritores, reescrevendo-os e reencenando seus problemas, como Ferreira Gullar:

Agora eles vigiam nosso leite
Vigiam se bebemos demais
Contam quantas vezes

Andamos de Mão dadas

Passando pelo mundo de ponta à cabeça de Philip K. Dick, para quem o mundo também é elétrico:

Como nos sonhos elétricos de Dick

O passado é uma projeção distorcida
do que vem a ser
A combustão espontânea do caos
Em um muro frágil, fino e pegajoso

Chegando em Guimarães Rosa em “Derrubem a coroa do rei nu…!”:

Eu conto os cadáveres no fim do dia
E planejo a vingança do
Rei posto.
Viver é perigoso. 

Para tudo que morre e nasce, o interlúdio é o presente infinito, de Úrsula Antunes, carrega consigo algo raro na poesia contemporânea: um insaciável desejo não de revelar um ou de registrar um momento, mas justamente rasgar o eu, virá-lo pelo avesso e confrontá-lo com um destino perverso. 

O piauiense Assis Brasil dizia que somos oprimidos não só socialmente, mas também cosmicamente, uma vez que o universo nunca responde nossas perguntas. Percebo o mesmo na poesia de Úrsula que grita através das palavras que não consegue dizer porque as coisas do mundo insistem em ser assim: mais coisa, menos eletricidade, mais luz, menos toques, mais adornos, menos esfumaçamento. 

A cura é caos significa isso: uma insatisfação imensa com um mundo que busca a beleza, a saúde, a alegria, a felicidade e esquece da urgência, da vida, inclusive da entropia, tema de um dos poemas do livro. 

Ela grita, mas sabe que não será ouvida porque as palavras estão aí, o que falta é gente para ler. É triste porque, como ela mesma sentencia:

A poesia é
a linguagem cifrada mais
clara
que eu conheço

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