Uma das alegrias da diversidade adentrar o mundo das artes é poder descobrir que histórias comuns se renovam através de perspectivas que até pouco tempo não apareciam. Não que temáticas LGBTQIA+ sejam recentes, pelo contrário, mas o que me alegra agora é que ela pode ser, simultaneamente central e pano de fundo, agente e paciente de uma história maior. É este o caso de A Imensidão (2022).

A Imensidão é um filme italiano dirigido por Emanuele Crialese, a mesma Terra Firme (2011) e Novo Mundo (2007) e protagonizado por Penélope Cruz, que faz a matriarca Clara. O filme é ambientado na Roma na década de 1970, e retrata a intimidade de uma família que é um retrato de uma sociedade que começa a escancarar suas feridas.
De um lado, temos a personagem de Adri, interpretado por Luana Giuliani, que é um jovem adolescente trans que pede para ser chamado de Andrea – que na Itália é nome masculino – ao invés de Adriana, seu nome de batismo. Ainda nas fases de descoberta, Adri é uma espécie de Tom Boy que tem vergonha de tirar a blusa para ir à praia e sequer tira-a para tomar banho sozinho na banheira.
Ao lado dele, temos Gino (Patrizio Francioni), o irmão gordinho que sempre que fica nervoso faz cocô atrás da porta e a irmã mais jovem, a mais novinha, feliz e sonhadora.
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O pai da família, interpretado por Vicenzo Amato, é um homem típico dos anos 70: se diz um espírito livre, mas tenta fazer sexo sem consetimento com sua esposa, agride-a fisicamente, oprime seus filhos o quanto pode e engravida a secretária de seu trabalho. Enquanto isso, Clara precisa fazer de tudo para manter o amálgama da família.
O ponto alto do filme é a construção de proximidade que vai se dando entre a personagem feminina, Clara, a mãe e seu filho/ainda filha Adri. Ao mesmo tempo em que vai descobrindo o fascínio pelas mulheres (Adri é um menino trans hétero), descobre também que seu sexo biológico ainda cobra o preço das violências de gênero que ele e sua mãe sofrem.

Algumas cenas são marcantes nesse ponto (spoiler de leve): quando Adri se esconde debaixo da cama dos pais e interrompe um sexo forçado que seu pai tenta; quando Adri revida um assédio sofrido por sua mãe na rua, mas acusa-a de ser bonita demais; quando Adri é obrigada pela Nonna, a avó, a vestir um vestido de menina para tirar fotos.
É neste ponto que Emanuele Crialese cria os momentos mais inesquecíveis do filme, que são as encenações das personagens de cenas clássicas que eles haviam assistido na televisão. Penélope pode dublar, cantar e dançar enquanto que Adri descobre na materialidade o que é interpretar um homem e dançar ao lado de uma mulher que, na ficção da ficção, não faz diferença que é sua mãe.

A transformação completa da estrutura, ao fazer um musical em preto e branco à la década de 40 do cinema italiano, para traduzir emoções que a narrativa realista não conseguiria, dá um toque de humor ao trágico e aumenta o drama: a gente se diverte, mas lembra que o real não cabem tais edições.
Sem dúvida, um dos filmes mais sensíveis que assisti em 2024 e um grande prazer poder vê-lo numa mostra como a 8¹/² Festa do Cinema Italiano. Um destaque final para a belíssima primeira cena da dança das crianças com sua mãe ao arrumar a mesa para refeição e, claro, os closes dos olhos mais lindos do cinema (depois de Liz Taylor), os de Penélope Cruz.
Veja o trailer de A Imensidão aqui:
O filme foi assistido durante a mostra 8¹/² Festa do Cinema Italiano!
