O mar é como o deserto: tem suas próprias miragens.
Hoda Barakat
Toda literatura, e porque não dizer todo texto, é um tecido. Ele é costurado e bordado com as palavras de uma língua a partir da imaginação que, por sua vez, nunca se contenta com as linhas retas, com a lisura dos dicionários. O texto é sempre um emaranhado de fios tecidos ao correr do papel e quanto menos emendas têm mais se vê a habilidade do tecelão, afinal mais ele soube enfrentar as urdiduras, as tramas do caos da natureza.
E dizer que literatura é texto não é uma metáfora, não é uma mera comparação, nem tampouco um exercício filológico de perceber os étimos em comum entre têxtil e texto, entre tecituras tão distintas e distantes quanto irmãs. É perceber, como faz Hoda Barakat, que todo texto é inescapavelmente tecido e é tragicamente alinhavado nas tramas do desejo, do corpo, da luta com as palavras e as imagens da guerra, por fim, dá disputa com e contra a vida. Assim, a vida para ela é um exercício constante de arar não a terra, mas a fluidez das águas.
O Arador das Águas, da escritora libanesa Hoda Barakat, é um romance publicado em 2021 pela Editora Tabla. Ele conta a história de um sujeito chamado Niqula que, durante a guerra do Líbano, tem sua loja de tecidos destruída. Em meio aos escombros da cidade, ele passa a morar no sótão desta loja e começar a rememorar seu passado: a história de seu avô e seu pai na venda dos tecidos, a relação ambivalente que vive com sua mãe e a paixão avassaladora pela curda Chamsa. Entre memórias e luta pela sobrevivência, Niqula relata a história dos tecidos – do veludo à seda, passando pelos bordados – na chamada Rota da Seda que atravessa da China ao Oriente Médio até a Europa.
Ao imaginar este homem diante da destruição de sua loja e, consequentemente, de toda a cidade ao seu redor, Hoda Barakat percebe que a trama da vida é forjada em duas frentes: uma das forças políticas, o capital, o comércio, os mercados e a vida urbana, e outra individual que atravessa e é atravessada por essa camada maior. Assim, indivíduos vivem o que vivem ou sofrem ou que sofrem não apenas porque são o que são, mas porque forças e dinâmicas sociais empurram seres para as margens, para as bordas da vida. Sofrimentos tão naturais quanto produzidos, tão da alma quanto infligidos aos corpos por outros.
Diante da destruição, por exemplo, Niqula se depara com a ambivalência deste sentimento: “O que vou ganhar fazendo inventário das ruínas, a não ser dor no coração?” e acaba por descobrir que é na cidade, ou seja, na vida em comum que os tecidos da vida são remendados. Primeiro, ao notar que enquanto o mundo se movia, ele estava voltado para suas questões mais íntimas:
Teria surgido nesta terra uma outra terra? Ou, quem sabe, era eu que estava alheio ao tempo, desatento a sua passagem desde o início dos eventos, transformados logo em guerra?!
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Depois, ao perceber a queda de sua vida, ou seja, uma espécie de crepúsculo dos sonhos pessoais paralelamente ao fim das tradições trazidas por seu pai e avô. Ubiquamente a tudo isso, a queda da própria história do Líbano:
Uma cidade que não avança no tempo, mas que se multiplica e se acumula em camadas, uma cidade que adentra profundamente na terra toda vez que seus edifícios se erguem.
Assim, o romance relata uma série de questões em torno do Oriente Médio como a origem e segregação dos curdos, a Guerra de Dois Anos, a Revolta de Darsim montando, porém, como ponto central uma série de espirais em torno da fabricação, história e memórias dos tecidos, sendo a principal delas uma projeção nas figuras das personagens femininas Chamsa e na mãe de Niqula. Chamsa, a grande paixão deste homem, é uma jovem curda que, como todos os curdos, se vê sem uma terra, sem uma pátria, sem uma cidadania assegurada. Apaixonada pelos tecidos, percebe que é em seu corpo que o exílio reverbera, na inescapável vida em uma terra que jamais pode ser sua:
Eu sou gorda, disse Chamsa, porque não tenho país. Eu como para que o meu corpo cresça e plante o seu peso firmemente na terra, como para fazê-lo pressionar o chão. (…) Eu engordo para me fixar e sentir a presença de uma pátria. Para que minhas dimensões se expandam e ocupem o ar, para me estabelecer em algum tipo de densidade e habitar uma casa que pertença a mim.
Aos poucos, Chamsa desenvolve, tal como a mãe de Niqula, o que se cunhou chamar de “grito da seda”, uma espécie de prazer erótico no contato, no toque e até no som que a seda faz nos corpos. Esta espécie de pulsão desejante, incontrolável, imparável que tomaria as mulheres é vista como profundamente nociva à centralidade do poder masculino, tendo sido diagnosticado como uma de patologia pelos franceses do século XIX. De qualquer forma, é através da máquina desejante produzida a todo instante entre o corpo da mulher e o tecido que Hoda Barakat desenha e borda o romance, entre palavra e linha, agulha e verbos, tal como quem, ao invés de arar a terra, fixa e sólida, precisasse arar o mar:
Cultivar e arar o solo nos sulcos da terra nada mais é do que tecer a vida, um vaivém, como os movimentos de um tear. O dia e a noite que se repetem sobre nós. A ligação entre o céu e a terra, entre a vida e a morte.
Niqula encontra, por fim, entre os tecidos e em companhia de uma animalidade inesperada, a possibilidade de habitação na própria história, ainda que sobre os escombros de uma vida que já foi.
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