Ler O ovo e a galinha, de Clarice Lispector, é como contemplar uma pintura surrealista. Não diria pertencer, no entanto, a tal estética, porque isso quer dizer uma ordem de expressões mais construída que gradativamente apresenta ao leitor seus significados, como inevitavelmente todo texto escrito. Em outras palavras, o surrealismo literário não dá conta de abraçar Clarice. O que acontece no conto é uma profusão sincera de imagens, em ordem arbitrária, que mais se aproxima ao funcionamento de uma pintura em que o observador decide por onde começar – se é que decide. É simultâneo, causa susto. Em tal maneira que representar o onírico dessa forma seria o ideal inalcançável dos escritores do gênero, porque leva a outro estágio do chamado “fluxo de pensamento”, permitindo ver uma manifestação do inconsciente e alterar a estrutura narrativa drasticamente por isso. Sempre ao ler um texto verbal o leitor irá começar pelo começo e seguir para o fim.
E para falar do conto, precisamos agir da mesma forma que a autora agiu ao concebê-lo: abstraindo.
Falar sobre abstração e surrealismo também nos comete outro exemplar: o quadro do pintor René Magritte, A Traição das Imagens, com o famoso dizer “Ceci n’est pas une pipe” (isto não é um cachimbo). Logo nas primeiras frases de O ovo e a galinha somos apresentados ao princípio de que as coisas não são como expostas, nem mesmo são como tratamos, mas são uma simples representação, limitada se comparada ao seu “original”. O quadro de um cachimbo pintado é um quadro de um cachimbo pintado, e não um cachimbo.
Sabemos disso porque se compararmos um cachimbo com um quadro, não demoraremos muito para perceber que são distintos; eles têm aparências, funções e usos diferentes. Constroem assim uma correspondência, nunca uma relação de superioridade ou inferioridade. Esta ideia de algo que “não falamos porque não temos propriedade” permeia o conto, trata do inalcançável ao homem e que, para extrair pouco de sua identidade, necessita de avatares. Com o resultado final obtemos algo diferente, não menor, nem maior. Nesse contexto vemos o que o filósofo Jean Baudrillard (1981) tentou explicar com a obra de Magritte, a teoria do simulacro e simulação, da experiência humana sendo uma imitação da realidade. Não vivemos em contato com o real, mas sim numa tentativa de experienciar o que existe em algum plano ou período, que além de tudo é impossível ao homem, para Clarice:
“Sendo impossível entendê-lo, sei que se eu o entender é porque estou errando. Entender é a prova do erro”
Cada vez mais que a personagem pensa sobre o ovo, mais ela oscila em perder suas qualidades, menos se constitui como algo físico, e muda sua função. Não só um processo de análise do presente, ao dizer “O ovo terá sido talvez um triângulo que tanto rolou no espaço que foi se ovalando”, comprova um processo de mudança o qual possivelmente irá se repetir. As qualidades do ovo evocam uma ideia de divindade, e é neste ponto que sua carga simbólica se estende.
Há uma repercussão na história cultural e mitológica da imagem dêitica feminina associada ao ovo. E muitas dessas imagens compõem um quadro de significados: fertilidade, matrilinearidade, misticismo etc. Tudo isso nos faz pensar no ovo como o aspecto feminino perdido pelo domínio do outro masculino através dos tempos – e se pararmos aqui, não estaríamos errados em dizer que é este o tema final; no entanto ainda há um conceito mais abstraído no conto enquanto texto macroscópico. Algumas imagens resistem hoje no imaginário popular, um bom exemplo disso é a Páscoa, data comemorativa cristã atribuída à ressurreição de Jesus três dias depois da sua crucificação, segundo o Novo Testamento, entretanto, em sua origem, os eventos eram pagãos e a imagem do coelho, entre outras, era associada a Ishtar, uma deusa de seios fartos e quadris largos (daí o nome “Easter” no inglês). O coelho que ainda vemos com o chocolate nada mais é do que um símbolo de fertilidade usado em rituais à essa deusa. A galinha, no conto, teria perdido sua identidade como um ser que veio do ovo. Ela é reduzida à sua função inicial de mãe: guardar o filho. Sendo assim temos uma construção – ou melhor, desconstrução – entre o ovo e a galinha. O ovo pertence a uma qualificação enquanto ovo apenas, e a galinha a outra; não podendo nós afirmarmos se são o mesmo. A permanência do ser do ovo é uma incógnita; no texto a incógnita pode ser vista, mas não especificada, como uma linha de giz de desenho policial a qual nos indica ter existido um corpo ali, mas que foi recolhido.
Nessa ótica funcionalista, percebemos também um comprometimento com tal “desenho policial”, que nada mais é uma pintura da verdade. Entendendo que essa verdade reside na realidade e, acima de tudo, produz significados para os incapacitados seres humanos, nunca será possível a nós, enquanto seres humanos, encontrar o sentido real das coisas (os objetos). Em outras palavras, nunca encontraremos o corpo. Nós atribuímos significados pelo uso, e mesmo que fôssemos apresentados essa verdade universal, esta não seria verossímil, porque a consideraríamos ilógica ao não constatarmos um uso remotamente direto, e ainda tentaríamos mudá-la: “Se descobrirem [o ovo], podem querer obrigá-lo a se tornar retangular”. Ficamos, então, no embate entre o ímpeto de mudança, e a resignação.
Somos colocados num cenário complicado de se classificar. Viveríamos, segundo o conto, numa dimensão ilusória que sequer teria o caminho certo para o real. Além disso, não importaria o que fizéssemos já que nosso Ser seria incapaz de enxergar além das máscaras, do véu, da aura dos dedos (como a personagem diz), e não haveria imaginação que descobrisse a verdade – embora criasse outra à sua imagem primitiva.
Seguindo essa vontade de buscar o real, o trecho “É necessário que a galinha não saiba que tem um ovo. Senão ela se salvaria como galinha, o que também não é garantido, mas perderia o ovo” reflete numa autodestruição da identidade, um fardo a ser vivido pela não-percepção, porque tomar conhecimento seria um ato irreversível e, para que um dia o homem seja forte para aguentar a verdade, deverá entorpecer-se em inverdades e esperar a evolução agir. Seria abdicar da existência em prol de outra existência evoluída, mas que possuem laços hereditários. Com a perda da função verdadeira “De repente olho o ovo na cozinha e vejo nele a comida”, o lapso de angústia da personagem culmina nessa evolução, ou um pedaço dela. Através de metamorfoses ela presencia um vislumbre da verdade, seu mundo se desconstrói, e por fim ela avisa que vai morrer e se despede:
“(…) adeus, olhei demais um ovo e ele me foi adormecendo”
Embora não haja evolução de fato, porque como já dito é impossível ao homem, sincronicamente, a personagem alcança apenas uma visão do futuro, fazendo então aflorar uma vontade instintiva do homem (da mulher) que é a curiosidade. Mesmo que isso custe a vida ou seja doloroso, ela não se limita em saber que existe o além e não o buscar, a parar no começo da floresta, ou não voltar ao ventre materno e descobrir o começo de tudo, mesmo que já esteja velha. É necessário a personagem quebrar o ovo para saciar uma vontade, essa curiosidade, e não uma fome, porque o ovo não é em primeiro momento uma comida.
A perda de função levou a buscar uma verdade entre pessoas como uma espécie de culto, sendo preciso disfarces para viver. Na passagem da história “Faço parte da maçonaria dos que viram uma vez o ovo e o renegam como forma de protegê-lo” esse disfarce faz alusão à religiosidade antiga de proteção à uma figura feminina, sob o totem de outras imagens religiosas para continuar seu ideal, muitas vezes custando equívocos. O mesmo ato se repete, como explicado aqui antes, com a galinha que precisa não ter conhecimento do ovo para carregá-lo, a fim de um bem maior “Por devoção ao ovo, eu o esqueci. Meu necessário esquecimento. Meu interesseiro esquecimento”. O amor é apresentado como uma forma de reconhecer pessoas disfarçadas, é uma aproximação da verdade:
“Amor é quando é concedido participar um pouco mais”
Portanto um meio para a evolução humana, sendo esse “um pouco mais” a ideia de adentrar ainda mais, além, transpassar algumas ilusões e aproximar-se da realidade. Porém utilizar-se do amor é uma tarefa difícil visto a perda de outras ilusões que não dizem respeito a uma imitação da realidade, então surge o medo do vazio, do oblívio, porque “(…) poucos suportam perder todas as outras ilusões”. A personagem teria que remediar perdas ilusórias e saber administrar o que vale a pena ser deixado. Assim, o homem como meio se repete pouco depois, “O meu mistério é que eu ser apenas um meio, e não um fim”, reforçando a ideia do homem incapaz de alcançar a verdade, pois esta é final, e o homem, passageiro.
Apesar de evocar os conceitos de uma religiosidade antiga feminina, considerando todo o contexto histórico em que Clarice se inseriu, sua famosa leitura numa convenção de bruxaria wicca em Bogotá e seu interesse pragmático no misticismo, não poderíamos dizer que o conto fala de esoterismos, paganismo ou sinônimos deste tipo. Porque se caminharmos para as entrelinhas da quase-história, encontraremos uma vontade dentro desse tema de “magia” associado ao conceito de “amor”. E se analisarmos o conceito de amor, embora, mais uma vez, esteja forte e seja válido coloca-lo junto a outras palavras prototípicas do conteúdo como “compaixão”, ainda há outro arquétipo expressivo mais escondido.
Porque pela presença exaustiva de um ato de busca e a remissão da palavra no conto, é perceptível e legítimo dizer que O ovo e a galinha fala sobre segredos. Toda a discussão funcionalista, onde nos encaixamos no espectro do real e do falso, de misticismo e amor sublime, converge para a questão da verdade. Para onde quer que nos voltemos ao texto, poderemos inferir diversas características relacionadas à verdade, e que, acima de tudo, esta “verdade” é um resultado final. A verdade é a qualidade que está mais fundo, mais dentro da casca do ovo. E o ato da verdade remete a segredos, que se constroem pela omissão das verdades – um raciocínio nada mais do que lógico. Guardá-las é indicar instintivamente que ela está ali, seja a ordem desse indício atribuído ao divino ou ao próprio homem, a palavra-chave para o conto de Clarice se faz tão destrutiva e tentadora quanto abusar das ilusões do mundo real.