No manifesto Bofetada no gosto público (1912), os poetas e artistas cubofuturistas Vladimir Maiakóvski, David Burliuk, Aleksei Krutchônikh e Vélimir Khlébnikov instauraram uma proposta para a poesia russa do século XX: “O passado é estreito. A academia e Pushkin são mais incompreensíveis que os hieróglifos. Lancemos Pushkin, Dostoiévski, Tolstoi, etc., do navio de nosso tempo”. Para a classe artística, a Rússia do início do século XX foi o terreno propício para negar o cânone estabelecido na era dos czares e inaugurar uma literatura revolucionária – tanto no seu conteúdo, quanto na forma.
O período foi marcado pelo surgimento de diversas correntes vanguardistas e pela fertilidade criativa. Inicialmente, seus representantes apoiaram veementemente a revolução de Outubro e tudo que ela significaria para a sociedade russa: não apenas uma ruptura com o sistema aristocrático, mas uma reinvenção do espírito do país. Essa liberdade, contudo, logo foi substituída pela burocratização das artes imposta pelo Realismo Socialista, a estética obrigatória que toda obra – literária ou não – deveria seguir.
Como o poeta Óssip Mandelstam já disse um dia:
“Em nenhum lugar do mundo se dá tanta importância à poesia: é somente em nosso país que se fuzila por causa de um verso”
Os anos do stalinismo causaram, como bem pontua Roman Jakobson no ensaio A geração que esbanjou seus poetas, “uma sufocação na história”, com os suicídios, os fuzilamentos e as criminalizações daqueles que mais fomentaram o discurso revolucionário.
O NotaTerapia separou 8 dos poetas mais substanciais para a revitalização da literatura russa:
1- Vladimir Maiakóvski
Reconhecido como “o poeta da revolução”, Maiakóvski se encontra como uma das maiores líricas do século XX. Sua máxima de que “Não há arte revolucionária sem forma revolucionária” sintetiza sua curta – porém produtiva – obra poética, teórica e teatral. Após a revolução de 1917, Maiakóvski colaborou com o governo na criação de lemas revolucionários, mas logo foi tachado pelos burocratas do Partido como “incompreensível para as massas”. Também sua criação poética mais subjetiva, menos engajada, é reprovada. Suicidou-se em 1930, um ano após a primeira encenação de sua peça O percevejo, em que “a vida está saturada; a revolução social do mundo foi concluída, mas a revolução do espírito ainda está pela frente.”
Adultos
Os adultos fazem negócios.
Têm rublos nos bolsos.
Quer amor? Pois não!
Ei-lo por cem rublos!
E eu, sem casa e sem teto, com as mãos metidas nos bolsos rasgados, vagava assombrado.
À noite vestis os melhores trajes e ides descansar sobre viúvas ou casadas.
A mim Moscou me sufocava de abraços com seus infinitos anéis de praças.
Nos corações, no bate o pêndulo dos amantes.
Como se exaltam as duplas no leito do amor!
Eu, que sou a Praça da Paixão, surpreendo o pulsar selvagem do coração das capitais.
Desabotoado, o coração quase de fora, abria-me ao sol e aos jatos díágua.
Entrai com vossas paixões! Galgai-me com vossos amores!
Doravante não sou mais dono de meu coração!
Nos demais – eu sei, qualquer um o sabe!
O coração tem domicílio no peito.
Comigo a anatomia ficou louca.
Sou todo coração – em todas as partes palpita.
Oh! Quantas são as primaveras em vinte anos acesas nesta fornalha!
Uma tal carga acumulada torna-se simplesmente insuportável.
Insuportável não para os versos de veras.
(Traduzido por Haroldo de Campos e Boris Schnaiderman)
2- Anna Akhmátova
Nascida em 1889, Akhmátova foi um dos grandes nomes do Acmeísmo russo, um movimento modernista que, na contrapartida do caráter demolidor das vanguardas, almejava a uma linguagem clara e simples em diálogo com a tradição. Sua vida foi dividida por Lauro Machado Coelho (autor de Anna, A voz da Rússia) em três partes: sua infância feliz e o despertar para o ofício da escrita, ainda na adolescência; sua carreira artística ao lado dos representantes da nossa poesia russa, no auge do sucesso, até os anos stalinistas; e, por fim, seus últimos anos de vida, após a morte de Stálin, com o degelo e a consequente republicação de sua obra. Seu maior poema, Réquiem, é uma elegia sobre o sofrimento do povo russo sob o condão de Stálin.
O último brinde
Bebo à casa arruinada,
às dores da minha vida,
à solidão, lado a lado
e a ti também eu bebo –
aos lábios que me mentiram,
ao frio mortal no olhar,
ao mundo rude e brutal
e a Deus que não nos salvou
Música
Algo de miraculoso arde nela,
fronteiras ela molda aos nossos olhos.
É a única que continua a me falar
depois que todo o resto tem medo de estar perto.
Depois que o último amigo tiver desviado o seu olhar
ela ainda estará comigo no meu túmulo,
como se fosse o canto do primeiro trovão,
ou como se todas as flores explodissem em versos.
(Traduzidos por Lauro Machado Coelho)
3- Vélimir Khlébnikov
Tido como o primeiro vanguardista russo e mestre de Maiakóvski, Khlébnikov foi favorável à Revolução de Outubro e em 1921 participou da Campanha do Exército Vermelho na Pérsia. Físico e matemático, começou a se dedicar inteiramente à literatura aos 25 anos e foi um dos autores do manifesto cubofuturista. Para Boris Schnaiderman, principal tradutor de sua obra para o português, Khlébnikov foi o precursor do surrealismo. No final de sua vida, entretanto, não conseguiu a publicação de seus poemas. Morreu em 1922, refugiado num asilo psiquiátrico.
Eis-me levado em dorso elefantino,
Palanquim no elefante virgem-fúmeo.
Todas-me-amando, novo Vixnu,
Tramam, miragem nívea, o palanquim.
Músculos de elefante, balançai,
Armadilhas de caça, magníficas,
Para que sobre a terra a que descai
Agora tombe em tromba de carícias.
Brancas miragens, vós, com manchas negras,
Mais brancas do que a flor da cerejeira.
Vossas formas fremindo estão retesas
E flexíveis como plantas da treva.
Eu, no elefante branco, Bodhisattva,
Vou como antes, tenro, pensativo.
A virgem que me vê responde grata
Com flamas que são feitas de sorrisos.
Sabei que ser o peso elefantino
Jamais, em parte alguma, foi vergonha.
Trançai-vos em cerrado palanquim
Ó vós, enfeitiçadas pelo sonho.
Difícil imitar a pata larga.
Difícil ser o dente no seu curvo.
Cantos, coroas, santo som da flauta:
Conosco, sobre nós, o Olhiazul.
(Traduzido por Haroldo de Campos)
4- Serguei Iessiênin
Expoente de outra ramificação das vanguardas, o Imagismo, Serguei Iessiênin também simbolizou a tragédia vivida pelos grandes poetas soviéticos: viveu 30 anos de grande furor literário e pessoal, foi casado com a precursora da dança moderna Isadora Duncan, e encerrou sua vida enforcado num quarto de hotel, 7 anos após o Outubro. Seu suicídio afetou fortemente a vida de outros autores de sua geração, principalmente de Maiakóvski, grande admirador de sua obra e que o dedicou, postumamente, o poema “A Serguei Iessiênin” (Nesta vida morrer não é difícil./ O difícil é a vida e seu ofício).
A confissão de um vagabundo
Nem todos sabem cantar
Não é dado a todos ser maçã
Para cair aos pés dos outros.
Esta é a maior confissão
Que jamais fez um vagabundo.
Não é à toa que eu ando despenteado,
Cabeça como lâmpada de querosene sobre os ombros.
Me agrada iluminar na escuridão
O outono sem folhas de vossas almas,
Me agrada, quando as pedras dos insultos
Voam sobre mim, granizo vomitado pelo vento.
Então limito-me a apertar mais com as mãos
A bolha oscilante dos cabelos.
Como eu me lembro bem então
Do lago cheio de erva e do som rouco do amieiro
E que nalgum lugar vivem meu pai e minha mãe,
Que pouco se importam com meus versos,
Que me amam como a um campo, como a um corpo,
Como à chuva que na primavera amolece o capim.
Eles, com seus forcados, viriam aferrar-vos
A cada injúria lançada contra mim.
Pobres, pobres camponeses,
Por certo, estão velhos e feios,
E ainda temem a Deus e aos espíritos do pântano.
Ah, se pudessem compreender
Que o seu filho é, em toda a Rússia,
O seu melhor poeta!
Seus corações não temiam por ele
Quando molhava os pés nos charcos outonais?
Agora ele anda de cartola
E sapatos de verniz.
Mas sobrevive nele o antigo fogo
De aldeão travesso.
A cada vaca, no letreiro dos açougues,
Ele saúda à distância.
E quando cruza com um coche numa praça,
Lembrando o odor de esterco dos campos nativos,
Lhe dá vontade de suster o rabo dos cavalos
Como a cauda de um vestido de nooiva.
Amo a terra.
Amo demais a minha terra!
Embora a entristeça o mofo dos salgueiros,
Me agradam os focinhos sujos dos porcos
E, no silêncio das noites, a voz alta dos sapos.
Fico doente de ternura com as recordações da infância.
Sonho com a névoa e a umidade das tardes de abril,
Quando o nosso bordo se acocorava
Para aquecer os ossos no ocaso.
Ah, quantos ovos nos ninhos das gralhas,
Trepando nos seus galhos, não roubei!
Será ainda o mesmo, com a copa verde?
Sua casca será rija como antes?
E tu, meu caro
E fiel cachorro malhado?!
A velhice te fez cego e resmungão.
Cauda caída, vagueias no quintal,
Teu faro não distingue o estábulo da casa.
Como recordo as nossas travessuras,
Quando eu furtava o pão de minha mãe
E mordíamos, um de cada vez,
Sem nojo um do outro.
Sou sempre o mesmo.
Meu coração é sempre o mesmo.
Como as centáureas no trigo, florem no rosto os olhos.
Estendendo as esteiras douradas de meus versos
Quero falar-vos com ternura.
Boa noite!
Boa noite a todos!
Terminou de soar na relva a foice do crepúsculo…
Eu sinto hoje uma vontade louca
De mijar, da janela, para a lua.
Luz azul, luz tão azul!
Com tanto azul, até morrer é zero.
Que importa que eu tenha o ar de um cínico
Que pendurou uma lanterna no traseiro!
Velho, bravo Págaso exausto,
De que me serve o teu trote delicado?
Eu vim, um mestre rigoroso,
Para cantar e celebrar os ratos,
Minha cabeça, como agosto,
Verte o vinho espumante dos cabelos.
Eu quero ser a vela amarela
Rumo ao país para o qual navegamos.
(Traduzido por Augusto de Campos)
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5- Olga Bergholz
A escritora teve um notável papel na literatura russa no período soviético. Nascida em São Petersburgo, a poeta trabalhou um tempo como jornalista e foi presa pelo cerco de Stalingrado. Durante o período de guerra, ela ocupou seu posto na rádio transmitindo poemas que eram ouvidos nos abrigos, tentando transmitir algum sentimento de esperança.
Nem mesmo tente
Nem mesmo tente voltar seu olhar
Nesta noite melancólica, neste gelo melancólico;
Há alguém esperando em suas pegadas,
Você não pode parar de responder seus olhos.
Hoje eu olho para trás e… de uma vez
Eu vejo: ele olha para mim, meu amigo
Com aqueles olhos vivos de gelo –
Meu único alguém até o fim
E eu não saberia disso, portanto
Eu pensaria que alguma outra seria minha luz
Mas, oh, meu sacrifício, sonho, paraíso,
Eu vivo apenas quando você está em minha visão!
Só o seu olhar faz a minha vida certa,
Eu tenho fé somente em seu reflexo;
Para quem vive – eu sou a sua esposa,
Sou a janela – para nós dois.
6- Boris Pasternak
Pasternak, além de autor do conhecido Doutor Jivago, foi um poeta que, como muitos, acolheu a Revolução com entusiasmo em seu início. Todavia teve suas produções atacadas pelos “intermediários” (os burocratas que deveriam julgar toda obra artística, naquele período) e consideradas alheias ao espírito do Realismo Socialista. Tentou publicar seu romance Doutor Jivago com o degelo pós-Stálin, mas foi recusado pelos editores russos. Encaminhou-o, portanto, a amigos que viviam no Ocidente e conseguiu sua primeira publicação, na Itália. Com ele, Pasternak ganhou o Prêmio Nobel de Literatura em 1958, numa clara intenção antissoviética da Academia sueca.
Minha irmã vida
Minha irmã vida hoje se desborda,
Desfaz-se contra todos como chuva.
Ó gente de berloques que rabuja
E ferroa polida feito cobra!
Os bem-postos terão razões aos centos,
Mas de tuas razões quem não rirá?
Olhos e relvas roxas na tormenta
E o horizonte odora a resedá.
Quando em maio, você, estrada afora,
Lê horários de trem. – ramais floridos,
Mais grandeza que nos Livros de Horas
Há nisto, e os olhos quedos, absorvidos.
Quando apenas o ocaso reverbera
Sitiantes à beira-ferrovia,
Percebi que a estação não era esta
E o sol-posto de mim se condoía.
Três salpicos de sino: o trem se afasta.
– Não é aqui! se desculpa, aos rechaços.
No vagão, odor de noite queimada.
Dos degraus a estepe cai para os astros.
Piscapiscando, a amada, olhos mortiços,
Fata-morgana sonhava lá fora.
O coração borrifa os passadiços
E expulsa para a estepe as portinholas.
(Traduzido por Haroldo de Campos e Boris Schnaiderman)
7- Óssip Mandelstam
Integrado ao grupo dos acmeístas junto à Anna Akhmátova, Mandelstam foi também um escritor profundamente condicionado aos acontecimentos da Rússia: foi tido diversas vezes como contra-revolucionário pelas autoridades soviéticas e foi preso, em 1934, por ter escrito versos satirizando Stálin. Após isso é sequencialmente sentenciado a anos no exílio e em campos de trabalho forçado, morrendo num gulag provisório antes de ser transferido para a Sibéria. Apesar das distinções entre os acmeístas e cubofuturistas, sua poesia assemelhou-se muito a dos últimos por seus jogos verbais.
A concha
Talvez te seja inútil minha vida,
Noite; fora do golfo universal,
Como concha sem pérola, perdida,
Me arremessaste no teu areal.
Moves as ondas, como indiferente,
E cantas sem cessar tua melodia.
Mas hás de amar um dia, finalmente,
A mentira da concha sem valia.
Jazerás a seu lado pela areia
E pouco faltará para que a escondas
Nessa casula onde ela se encandeia
À sonora campânula das ondas,
E as paredes da frágil concha, pouco
A pouco, se encherão do eco da espuma,
Tal como a casa de um coração oco,
Cheio de vento, de chuva e de bruma…
(Traduzido por Augusto de Campos)
8- Marina Tsvietáieva
Tsvietáieva nasceu em Moscou em 1892 e publicou seus primeiros poemas aos 16 anos. Seu primeiro marido lutou no Exército Branco, fato que causou sua migração para a Europa e o ódio à sua obra na União Soviética. Marina manteve correspondência com Rainer Maria Rilke, Boris Pasternak e Anna Akhmátova. Suicidou-se em 1941, deixando o legado de uma poesia marcada pela musicalidade e pela objetividade, deixando pouco espaço para ambivalências.
A carta
Assim não se esperam cartas.
Assim se espera – a carta.
Pedaço de papel
Com uma borda
De cola. Dentro – uma palavra
Apenas. Isto é tudo.
Assim não se espera o bem.
Assim se espera – o fim:
Salva de soldados,
No peito – três quartos
De chumbo. Céu vermelho.
E só. Isto é tudo.
Felicidade? E a idade?
A flor – floriu.
Quadrado do pátio:
Bocas de fuzil.
(Quadrado da carta:
Tinta, tanto!)
Para o sono da morte
Viver é bastante.
Quadrado da carta.
(Traduzido por Augusto de Campos
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