Comecemos a narrativa pelo que lhe há de melhor: foi encontrado morto, o velho, no final da rodada do motorista. Alguns leitores haverão de ter preservado seus pudores, sentido algo ruim dentro de si, enquanto outros hão de elogiar a prontidão de interesse da narrativa, nesse singelo início que vai logo ao que interessa: morreu. Felizmente, não há escritor maldoso, tampouco narrador de más intenções, que vê nessa situação gracejo e oportunidade para cutucar no leitor sua delicadeza para a morte, sempre isenta da curiosidade mórbida e quem sabe até um desejo de ver a desgraça do próximo e pensar, todo cândido, que não era ele ou ela daquela vez, foi o outro, abençoado seja deus. Portanto, fica a narrativa apenas em seu começo normal, nos interessantes, na cena em que o motorista, após estacionar o ônibus na garagem ao fim de sua última rodada, levanta-se do volante e vê caído, nos bancos de trás, um senhorzinho. Aproxima-se, cutuca o velho, que não se move, se ajoelha, chama-o de senhor enquanto lhe balança e, por fim, constata que está morto.
O motorista se choca e dá um passo pra trás, o peito em compressas de gelo, horrorizado. Olha de novo pro senhorzinho, deitado sobre o braço direito, uma jaqueta jeans de tinta bem diluída na lavagem sobre os ombros, calça moletom preta, com um ou outro fio solto pelas costuras laterais, os chinelinhos brancos cobrindo as meias cinzas, os óculos no piso, dois assentos a frente, provavelmente por conta das freadas, trincados e com uma perna da armação fininha gentilmente dobrada pelo impacto, a pele enrugada empalidecida, o rosto de gente morta completamente tomado por aquela expressão sem eira nem beira que é de toda pessoa morta, quase um retorno pra natureza implacável, pro barro que não sente nem dói. Apieda-se o motorista do coitado, faz um sinal da cruz, se ajoelha, e pensa no que fazer.
A princípio, quer chamar a polícia. Ou a ambulância. Ou já uma funerária. Não sabe o que fazer quando a pessoa já está morta, foi-se a vida, foi-se a loteria de salvar-se, ficaram-se os papéis a preencher. O cansaço de dirigir a última rodada, chegar em casa nas batidas de duas e pouco da manhã o pegam desprevenido. Que fazer, ein José? Revolta-se então contra os outros passageiros. Pensa em quanto tempo deveria estar o senhor ali jogado, não caindo do banco só porque não havia espaço o bastante para uma pessoa cair, estreitos que eram os vãos dos assentos. Viram o senhorzinho e pensaram: está bêbado. Ou desmaiou. Ou mesmo viram que tinha morrido. Talvez nem mesmo teriam notado. Seja como for, todos os irresponsáveis passaram, olharam para o senhor, e o deixaram como estava, na beira do banco, despencado num abismo do qual não se voltava nem a pau. Cafajestes, pensou o motorista, passam por mim como se eu fosse máquina, lhes faço o favor de dirigir quilômetros e quilômetros todos os dias e só uns me dão os bons dias, boas tardes e boas noites. Os que o viram daquele jeito, pensaram provavelmente: não é da minha conta, que se vire o motorista depois pra tirar o velho daqui, eu tenho é hora marcada e tô cansado. E, assim, transferia-se a carga deixando o peso morto no mesmo lugar em que estava.
Estava agora o motorista a andar de um lado pro outro. Que fazia, quem chamava, pra qual número ligava? Onde já se viu também essa família deixar tão cansado membro ir por aí desse jeito, pegar uma última rodada de ônibus, nos perigos que estão essas ruas nos últimos dias? Deviam estar cuidando dele, vigiando-lhe as imprudências, cuidando das velhices que gostaria de cometer. Pois agora pecou a última de todas: morreu. E, então, chegou o motorista à razão, que o velho não lhe era responsabilidade alguma. Pois pense bem, era ela de todos que haviam passado, visto, e não movido uma palha sequer para lhe ver a saúde, os batimentos, erguê-lo com esforço, parar o ônibus para providenciar os devidos cuidados de saúde enferma ou vida extinta. Não, passaram todos a roleta, desceram pela porta e tchau! Ele, o motorista, o mais cansado, o mais estressado, que em trânsito daquela cidade não se dirige sem usar de combustível a sanidade, tinha agora de perder as horas de sono para atender as faltas de responsabilidades de tantos e tantas. Pois não ia mesmo! Por questão de honra e justiça do mundo, virou-se e saiu do ônibus, fechando a porta e indo pra onde estava seu carro, determinado a ver frutificar nas mídias o descaso público da família e dos passageiros com o pobre senhor.
Não deu outra! No outro dia, vieram as moças da limpeza passar água no ônibus quando sentiram os cheiros nauseabundos do corpo. Colocaram as mãos em concha sobre o nariz, mas correram logo pra acudir o pobre lazarento abandonado às moscas atrás do ônibus. Se organizaram, conseguiram um tempo entre o tanto de coisas pra fazer e finalmente vieram buscar o corpo do senhor. Nenhum documento. Chegou no IML e, enquanto via-se a justificativa da morte, justificava-se o dito motorista com a empresa: não vi o velho deitado no fundo do ônibus, não, como que ia saber, quem tem que ver essas coisas são os passageiros. E as moças da limpeza confirmando que é, tava o corpo bem no fundinho mesmo, não devia de dar pra ver de onde tava o motorista. O jornalista chegou no cemitério antes do corpo, recolheu depoimento do coveiro, que sempre sabia dessas coisas, enquanto colocava o homem em seu lugarzinho público. Sem documentos, sem identificação, sem procuras pela família. Enterrado como indigente. Ainda bem, seu jornalista, que esse daqui nem teve velório, pelo menos a família não sentiu o cheiro dele.
Saiu a matéria no outro dia e, vide a clara injustiça desse mundo, estava lá também o motorista acusado de negligência, na matéria, em não ver e recolher o corpo do idoso. Leu o homem a matéria com os sangues nos olhos, reclamando a quem quisesse ouvir que ia atrás dos seus direitos pra processar o bendito do jornalista que cutucava os outros até os cotovelos.