As histórias do Sítio do Pica-Pau Amarelo habitam o imaginário de todo brasileiro. As narrações das aventuras da boneca Emília e toda a turma do sítio sem dúvida embalaram a infância de todas as gerações desde que Monteiro Lobato escreveu suas obras. O que não se sabe, se evita saber, ou ninguém se dispôs a estudar, é que a boneca Emília é, na verdade, uma grande inventora, uma filósofa em nossa língua. Ela pensa, vive e cria de formas de linguagem inimagináveis para nós humanos, uma vida que, como ela diz, é hipótese. De pano, sua vida se restringe a invenção, a crialção e, assim, ela é o único ser livre do sítio, o único que pode habitar todos os espaços e viver todas as vidas.
As Memórias de Emília é um livro de Lobato em que a boneca escreve sua biografia. Bom, na verdade, ela coloca o Visconde de Sabugosa para escrever e se limitar a dar uns pitacos aqui e acolá. O NotaTerapia separou as melhores frases da obra. Confira:
-Espere – disse Emília. O escrevedor de memórias vai escrevendo, até sentir que o dia da morte vem vindo. Então pára; deixa o finalzinho sem acabar. Morre sossegado.
-E as suas memórias vão ser assim?
-Não, porque não pretendo morrer. Finjo que morro só. As últimas palavras têm de ser estas: “E então morri…” com reticências.
Verdade é uma espécie de mentira bem pregada, das que ninguém desconfia. Só isso.
Isso de começar não é fácil. Muito mais simples é acabar. Pinga-se um ponto final e pronto; ou então escreve-se um latinzinho: FINIS. Mas começar é terrível.
-Porque tanta estrelinha? Será que quer ocultar a idade?
-Não. Isso é apenas para atrapalhar os futuros historiadores, gente muito mexeriqueira.
Fiquei falando com uma pílula que o célebre Doutor Caramujo me deu. Narizinho conta que a pílula era muito forte de modo que fiquei falante demais. Assim que abri a boca, veio uma torrente de palavras que não tinha fim. Todos tiveram que tapar os ouvidos. E tanto falei que esgotei o reservatório. A fala então ficou no nível.
-Inda há pouco Dona Benta declarou que eu tenho coisas de verdadeiro filósofo. Sabe o que é filósofo, Visconde?
O Visconde sabia, mas fingiu não saber. A boneca explicou:
-É um bicho sujinho, caspento, que diz coisas elevadas que os outros julgam que entendem e ficam de olho parado, pensando, pensando.
A vida, Senhor Visconde, é um pisca-pisca. A gente nasce, isto é, começa a piscar. Quem para de piscar, chegou ao fim, morreu. Piscar é abrir e fechar os olhos – viver é isso. É um dorme-e-acorda, dorme-eacorda, até que dorme e não acorda mais. É portanto um pisca-pisca.
Cada pisco é um dia. Pisca e mama; pisca e brinca; pisca e estuda; pisca e ama; pisca e cria filhos; pisca e geme os reumatismos; pisca pela última vez e morre.
-E depois que morre? – perguntou o Visconde.
-Depois que morre vira hipótese. É ou não é?
Eu penso que todas as calamidades do undo vem da língua. Se os homens não falassem, tudo correria muito bem, como entre os animais que não falam. As formigas e as abelhas, por exemplo. Esses bichinhos vivem na maior ordem possível, com suas comidinhas a hora e a tempo – e que comidas! (E qual o segredo da felicidade desses animaizinhos? Uma só: não falam. No dia em que derem de falar, adeus ordem, adeus paz, adeus mel! A língua é a desgraça dos homens da terra.