Quanto pode a palavra no espaço-tempo? Esta é a pergunta que ainda me faço, após ter concluído a leitura do romance A Palavra-Humana, de Tiago da Silva Cabral. Me pergunto e, ao mesmo tempo, me sinto constrangida por pensar como insisto em pensar. Mas que estrutura de pensamento é essa que constrange?
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É que está tão entranhado em mim, esse jeito ocidental-eurocêntrico de pensar o espaço e o tempo de maneira linear, demandando de mim um grande esforço para pensar a realidade, por assim dizer, em uma perspectiva diferente, como a sugerida pelo Tiago. Esta mesma sensação de desconforto ocorre quando leio o ditado iorubá “Exu matou um pássaro ontem com uma pedra que só jogou hoje”.
Tiago da Silva Cabral, em seu livro, A Palavra-Humana, nos entrega, ou seria melhor, entrega a Pessoa-Que-Lê, uma obra complexa e provocadora, que amplifica em si, a complexidade interdisciplinar existente entre a literatura, a filosofia, a sociologia e a metaficção.
Publicada de forma totalmente independente, esta obra revela um cuidado extremo com a forma e o conteúdo, refletindo uma preocupação em construir uma narrativa que não apenas conta uma história, mas também é capaz de provocar reflexões profundas sobre a existência, a linguagem e o papel da poesia na sociedade contemporânea.
A história acompanha a jornada de João, um jovem aspirante a escritor, e seus encontros com personagens essenciais, como Carolina e Astrogildo, pessoas, cuja vida e intelecto ultrapassam as aparências, criando uma trama rica em simbolismos e críticas sociais.
A Palavra-Humana é uma obra que se destaca pelo uso recorrente da metalinguagem e pela interação constante do narrador onisciente com o leitor.
Desde o início, o autor estabelece um diálogo com a “Pessoa-Que-Lê“, que não é uma característica nova, o próprio Machado de Assis adorava conversar com o “caro leitor” dele. No entanto, o recurso quando bem utilizado cria uma aproximação como se o autor fizesse um convite especial, para que a gente participe enquanto lê.
Para tal efeito, o autor utiliza de notas de rodapé comentadas por um narrador irônico independente — que se apresenta como um “babuíno albino” — adicionando uma camada de humor e reflexão crítica, desconstruindo a própria narrativa enquanto a constroi simultaneamente.
O romance não segue uma estrutura linear convencional e isto faz com que esta narrativa seja ainda mais interessante. É preciso desconstruir a própria compreensão do tempo na gente, para compreender sua fragmentação.
São diferentes perspectivas e momentos históricos, em que o passado e o presente são costurados com tamanha fluidez, no qual se percebe que de repente o narrador-personagem está em na sua casa e de repente está em um hospital.
Vale um alerta para o uso de epígrafes, trechos de diálogos filosóficos e referências à cultura pop, que conferem à obra um tom ensaístico, desafiando o leitor a decifrar suas camadas de significado. Portanto, bastante atenção ao ler Palavra-Humana!
“Se engana quem pensa que filosofia e física falam sobre coisas diferentes. Tudo é sobre a nossa experiência com a realidade.” (p. 151)
“Mas não está tudo aqui no livro que você mesmo escreveu? E que, segundo você, está acontecendo agora palavra por palavra enquanto conversamos? Qual vai ser a desculpa do seu roteiro, Táquions? Como em Watchmen?” (p. 171)
A Palavra-Humana ou a Palavra-Que-Falta?
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No centro da obra está a reflexão sobre o poder das palavras de criar realidades e de como estamos imersos continuamente em realidades que criamos e nem percebemos o seu poder de absorção.
O próprio título, A Palavra-Humana, sugere uma exploração curiosa sobre como a linguagem pode ser uma ferramenta de construção e destruição da experiência humana.
Embora A Palavra-Humana possua uma abordagem inovadora, dialoga com clássicos como A Comédia Humana, de Honoré de Balzac. Assim como Balzac buscou construir um vasto retrato da sociedade francesa do século XIX, Tiago traça uma análise da realidade brasileira contemporânea, expondo desigualdades, hipocrisias e conflitos de classe.
Ambos os autores utilizam a literatura como ferramenta de crítica social, explorando personagens que transitam entre diferentes camadas sociais e desafiando as estruturas de poder através da linguagem.
Além disso, A Palavra-Humana compartilha com a obra de Balzac a ideia de que a escrita não apenas registra a realidade, mas a molda, tornando-se um instrumento de transformação e questionamento.
A história apresenta personagens que tentam controlar e definir o significado das palavras, enquanto outros — como João e Astrogildo — buscam libertá-las, permitindo que assumam significados múltiplos e fluidos.
“Nem todos estão prontos para serem atravessados pelo poder da poesia e aceitar que as palavras podem significar mais do que está no dicionário”. (p. 99)
Nessa relação entre arte e realidade, entre a poesia e a palavra, é que a história também mantém sua centralidade. João, como escritor em formação, enfrenta o dilema de equilibrar sua vocação literária com as dificuldades materiais da vida.
É necessário fantasia! E por isso, a Palavra-Humana faz toda a diferença na Pessoa-Que-Lê, que nunca mais você verá o mundo com as mesmas lentes em preto e branco. Na verdade, ter o poder da poesia em suas mãos, exerceria um poder muito maior sobre ele e como ele passaria a ver a vida.
A jornada da Palavra-Humana
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Sua jornada reflete as dificuldades dos escritores independentes no Brasil, especialmente os de origem periférica. A literatura, em vez de ser apenas um espaço de escape, torna-se para ele um campo de batalha onde suas próprias contradições e frustrações se desenrolam.
Carolina, personagem que entrega seu poder a Astrogildo, dá continuidade a uma tradição, que não ignora o poder da Palavra-Humana, da poesia. Passar o bastão, entretanto, foi mais difícil para Astrogildo, que encontrou no jovem João, a resistência de uma juventude que desaprendeu a ver beleza no real.
Mas quando João entende o sentido da poesia-magia na vida da Pessoa-Que-Lê, então tudo se transforma. Afinal, ele passou a ser o grande responsável pela guerra travada contra um mundo literal e insosso.
Um mundo sem cor e brilho, cheio de gente fria, domada por uma praticidade que faz com que o mundo literalmente desbote. Astrogildo, representa uma ponte entre o conhecimento acadêmico e a sabedoria popular.
Um “mendigo” que carrega um passado acadêmico brilhante e se recusa a se encaixar nas expectativas sociais, desafiando a noção de que a intelectualidade precisa estar associada a uma posição econômica ou institucional.
Sua relação com livros raros e proibidos adiciona um elemento de mistério e simbolismo, sugerindo que o conhecimento verdadeiro é sempre marginalizado pelos sistemas de poder.
Crítica social e filosófica
A crítica de Tiago é contundente quando o assunto é produção literária no Brasil e na maneira como as editoras fazem suas escolhas com base em padrões de obras importadas.
Nos faz pensar em como nossas escolhas são influenciadas por quem faz o mercado editorial e de como, na maioria das vezes, temos uma falsa impressão de que podemos escolher nossas leituras por conta própria. Ele constroi a história e se expõe de maneira que nem sempre conseguimos separar a obra do autor.
A obra não apenas expõe as desigualdades econômicas e raciais do Brasil, mas também questiona o papel das instituições acadêmicas e culturais na perpetuação dessas desigualdades.
A universidade, por exemplo, aparece como um espaço contraditório em que, ao mesmo tempo que oferece conhecimento, também restringe seu acesso a determinados grupos econômicos sociais, transformando-se em um mercado onde apenas aqueles que podem pagar conseguem participar integralmente.
“Se as faculdades pudessem, pensava João, elas venderiam apenas o diploma. A educação virou comércio, uma feira.” (p. 23)
Elementos do candomblé e da espiritualidade afro-brasileira são entrelaçados com figuras ocidentais clássicas, criando um sincretismo que reflete a própria formação cultural do Brasil.
A presença dos Orixás e sua interação com a história desafiam a visão eurocêntrica da literatura e dão à obra uma dimensão espiritual e filosófica singular, constituindo, em meu entendimento, uma obra de fantasia, mas sobretudo afro-futurista.
A Palavra-Humana ontem, hoje e amanhã
A Palavra-Humana é um romance que exige do leitor engajamento e abertura para experiências narrativas não convencionais. Sua prosa densa e rica em referências pode ser desafiadora em alguns momentos, mas é compensatória para quem se permite mergulhar em suas camadas repletas de significado.
A originalidade da obra está justamente na forma como combina diferentes gêneros, estilos e discursos para criar um mosaico literário que reflete a complexidade da experiência humana.
A Palavra-Humana é um livro que expande as possibilidades da literatura contemporânea brasileira e não apenas conta uma história, como também desafia o leitor a questionar sua relação com a linguagem, com a arte e com o mundo ao seu redor.
Para aqueles que apreciam narrativas que não se contentam com respostas fáceis e que exploram o potencial transformador da palavra escrita, esta é uma leitura essencial.
E para você, que certamente vai querer ler A Palavra-Humana, do Tiago, recomendo começar a desfazer as amarras ocidentais para entender a complexidade dessa história que acontece no presente, no passado e no futuro.
Sobre o autor:
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Tiago da Silva Cabral é um escritor cuja obra literária reflete sua formação em psicologia, abordando temas que exploram a condição humana e questões sociais. Desde 2009, publica de forma independente na plataforma Amazon Kindle, destacando-se em gêneros como fantasia, terror e realismo fantástico. Entre suas obras notáveis estão “Sarlack: O Grande Dragão Verde”, que alcançou posições de destaque entre os e-books mais vendidos na Amazon Brasil, e “Illumintaus: O Touro de Bronze”, um romance premiado, apresentado na FLIP em evento da Amazon em 2018. Para os leitores interessados em suas obras, é possível encontrá-las em formato digital na Amazon e, desde 2024, em versões impressas através da plataforma UICLAP. Tiago também compartilha contos, artigos e reflexões em seu blog pessoal, oferecendo aos leitores uma visão abrangente de seu trabalho literário e de suas perspectivas sobre arte e sociedade.