Antes de começar a falar de O Auto da Compadecida 2 precisamos juntos pensar os motivos que levaram à produção deste filme. Ao contrário das sequências tradicionais que visam dar continuidade às histórias contadas nas primeiras obras, no caso de O Auto da Compadecida 2 o motivo é outro.
O filme é uma celebração dupla: à vida, obra e memória de nosso mestre Ariano Suassuna, e, principalmente, ao sucesso do filme anterior, lançado em 2000. Esta continuação, então, não visava fazer a história avançar na narrativa com fatos novos, mas rever o primeiro filme através do tempo, remontando e recontando suas peças. Esta é a frase chave de O Auto da Compadecida 2: um jogo de remontagem.
A narrativa de O Auto da Compadecida 2 parte de Chicó que, agora, mora nos fundos da igreja de Taperoá e vive de contar a história da vida, morte e ressurreição de seu amigo João Grilo. Certo dia, João Grilo retorna e, no reencontro com o velho amigo, os dois se veem no meio de um imbróglio político em que duas forças locais, um coronel e um radialista, brigam para angariar votos através da popularidade de João.
Acredito que a coisa mais importante para pensar O Auto da Compadecida 2 é entender a importância da figura de Chicó. A meu ver, Chicó já era uma espécie de protagonista do primeiro filme e, desta vez, ele é, sem ressalvas, a mola que move a história. Chicó é o narrador, poeta, contador de histórias e mentiroso que move o filme através da memória do primeiro com as novas ações do segundo. Chicó é uma espécie de maestro que compõe o jogo complexo, mas riquíssimo, que advém da literatura de cordel: a tarefa de reduplicação narrativa que torna este filme uma espécie de paródia recontada do primeiro.
Assim, o mais fascinante da história não é ver esses personagens fazendo outras coisas além do que eles já fizeram, nem tampouco inventando novos destinos para eles. O jogo está em observar eles se tornarem parte das teias da narrativa cristalizada por Chicó, o narrador perfeito, e repetirem tudo outra vez e mais uma vez. Rosinha, então, retorna porque Chicó lhe dedicou uma música como no primeiro filme. A filha do coronel, desta monta, reduplica a figura da mulher do padeiro, Joaquim vira uma paródia de cangaceiro, meio capataz, meio peregrino da fé, e assim por diante.
O filme, então, se torna aquilo que ele é em essência: um auto. Para quem não conhece, o auto é um gênero que surge na Idade Média em que, através de linguagem simples, elementos cômicos e desejo de passar uma “moral”, atores contavam histórias de santos, do próprio Jesus ou pequenas narrativas em que pessoas encarnavam virtudes e vícios como a inveja ou a solidariedade. A proposta é louvar as figuras divinas como a Virgem Maria, como no caso do Auto da Mofina Mendes, ou contar histórias de pessoas na beira do abismo como no caso de O Auto da Barca do Inferno, ambas histórias de Gil Vicente.
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O próprio Auto da Compadecida de Ariano Suassuna é isso: a montagem de um auto em que histórias recontadas da literatura de cordel se juntam neste auto que celebra a misericórdia da Compadecida. Para isto, peça e filme fazem uso de elementos de diversas obras, desde Cervantes, de Dom Quixote, até uma história capturada de Shakespeare, como no caso da tirinha de couro que Chicó vai perder.
O que acontece neste segundo filme é, então, uma coisa sensacional: a celebração do auto enquanto gênero que se alimenta de outras histórias. Neste caso, Chicó passa a comandar um “auto dentro do auto”, em que o filme nada mais é que o Auto da Compadecida 1 contado por Chicó no Auto da Compadecida 2.
Com o retorno de João Grilo, o filme se torna um outro auto moralizante: a disputa da água no sertão, os políticos populistas, a exploração da fé em que, mais uma vez, a dupla de heróis vai intervir aplicando golpes nos poderosos. Neste jogo de bonecas russas, temos a história da morte e da morte de João Grilo e da sua consequente dupla ressurreição que ruma para a terceira morte, mais uma vez narrada através da voz de Chicó.
Isto faz com que todas as demais escolhas sejam felizes: a não ida para gravar no sertão, que seria uma péssima escolha, acaba ganhando um álibi. Como a história é toda narrada pela perspectiva de Chicó, aquela Taperoá não é mais aquela real do primeiro filme, mas esta segunda habitada pelos personagens de nossa memória e da memória do narrador e poeta Chicó.
Para finalizar, não quero nem canonizar o filme que, como diz a própria Rosinha, serve para a maioria preferir o primeiro. Mas é pra isso mesmo: O Auto da Compadecida 2 existe para a gente gostar ainda mais do primeiro e festejar a sua existência dentro de nossa cultura. Nosso cinema precisa dessas festas, desses jogos de montagem e remontagem com a nossa memória. E ver Chicó e João Grilo juntos será sempre um momento de celebração.
Não veja O Auto da Compadecida 2 procurando outro filme: veja ele como uma espécie de jogo, de dança, de festa com o primeiro. E festeje que a gente tenha uma cultura tão rica em nosso país.
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BOM