“’Til it happens to you you don’t know how it feels” (“até que aconteça com você, você não sabe qual é o sentimento”). Esse é o refrão de uma música de Lady Gaga e Diane Warren para o documentário “The Hunting Ground” (2015). Na minha humilde opinião, Gaga foi roubada de seu primeiro Oscar quando foi anunciado que o vencedor era a insossa canção de Sam Smith para o mais recente filme da franquia James Bond. Não saber como é até viver na pele, no contexto do documentário, dizia respeito ao abuso sexual, mas vale também para o suicídio. Mas não precisamos perder todas as esperanças para compreender quem pensa em tirar a própria vida: podemos compartilhar dessas emoções através do cinema. É isso que tenta – ênfase no “tenta” – fazer o filme “O Voo do Anjo”.
O que começa como uma banal entrega de comida acaba mudando a vida de duas pessoas. O entregador Arthur (Emilio Orciollo Netto) sobe ao apartamento do professor de física aposentado Vitor (Othon Bastos) levando a picanha favorita do senhor. Pede um copo d’água ao cliente e, enquanto o homem vai buscar, Arthur se dependura numa janela com o objetivo de pular da altura de vinte andares. Vitor o dissuade e convida-o para uma taça de vinho, afinal, naquele dia ele comemorava seu 88º aniversário.
Vitor não é original ao tentar convencer Arthur a desistir de seu plano mortal. Diz “imagina a dor de cabeça que você daria para o seu patrão, para a sua família”. Como bom físico, calcula que ao chegar ao chão o corpo seria esmagado por algo equivalente a 30 toneladas. Como pessoa antenada, lembra-se de Eric Clapton, que compôs a música “Tears in Heaven” após a perda do filho.
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Conversando, descobrem algo em comum: partilham da mesma profissão. Vitor deu aulas de física por cinquenta anos, Arthur há pouco abandonou a sala de aula, onde ensinava sociologia. O abandono e mudança de carreira, bem como a depressão que hoje o assombra, vieram após uma tragédia: a morte da filha pequena, pela qual ele se considera e é considerado por todos culpado.
Com uma viagem do filho Renan (Gustavo Duque), Vitor sugere que Arthur seja chamado para lhe fazer companhia, para que ele não fique só no apartamento, afinal, é viúvo. Ele diz que Arthur é um ex-aluno, mas isso não garante de cara a confiança do filho. Neste segundo tempo de convivência, mais prolongada, Vitor confidencia que é também poeta, embora nunca tenha publicado o que escreveu. É na escrita que ambos encontram consolo para suas perdas.
No elenco liderado por Othon e Emilio, surge como nota dissonante Dani Marques, que interpreta a esposa de Arthur. Ela precisa interpretar uma mulher que está passando por um processo dolorosíssimo de luto, com ódio correndo pelas veias, mas o que se destaca na performance é amadorismo. Além disso, as cenas com a empregada despachada Dora (Cida Mendes) são acompanhadas de efeitos sonoros que tornam esses momentos caricatos, no pior sentido do termo.
A cidade de Goiânia, onde se passa a história, por vezes vira também personagem. Isso acontece conforme Vitor e Arthur andam por um parque filosofando sobre “vizinhos de tempo”, ou seja, os contemporâneos que se encontraram pelo acaso. Também é personagem quando comentam, vendo as luzes da metrópole, a maravilha da urbanização mas ao mesmo tempo a tristeza que é viver fechado em prédios ultrasseguros. Um ponto negativo no uso e abuso da cidade-personagem ocorre quando são mostradas como cenários e locações empresas que financiaram o filme, deixando o que era uma obra cinematográfica com ares de anúncio publicitário.
A coisa não melhora quando mudam a ação para uma cidade vizinha. Ali começa uma miniaula sobre videiras, uvas e vinhos. É mais uma prova de que o cinema brasileiro, salvo raras exceções, não sabe fazer publicidade sutilmente. Tomemos como exemplo “Desapega”, que fez propaganda da OLX, e “De Repente, Miss”, do Beach Park de Aquiraz. Esses dois exemplos são curiosamente de um mesmo diretor, Hsu Chien, mas o filme escrito e dirigido por Alberto Araújo sofre do mesmo mal.
Alberto Araújo serve como diretor e roteirista de “O Voo do Anjo”, mas atua em outras frentes como poeta, escritor, compositor, apresentador de programas turísticos e, claro, cineasta. Ele conta que buscou tratar o tema sensível de forma respeitosa, mostrando como a amizade pode fortalecer a alegria de viver. Para isso, escalou o veterano Othon Bastos, que por sua vez indicou o amigo de longa data Emilio Orciollo Netto para o papel principal.
“Quando a gente morre, a gente perde todos os amigos”. Esta frase não é do filme, mas sim de outra produção referenciada por Vitor, estrelada por Jack Lemmon. É uma frase de efeito num filme que não usa de viés religioso ou pregador para desencorajar o suicídio: estender uma mão amiga é o primeiro passo, mas o caminho é longo. Não é só durante o Setembro Amarelo que precisamos falar sobre suicídio. Segundo dados recentes, ocorrem 14 mil suicídios todos os anos no Brasil, o que equivale a 38 por dia – mas a cada morte existem outras vinte tentativas. É fundamental que o cinema trate do assunto, para suscitar debates – mas de preferência sem tanta propaganda.
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