“Surdo”, romance de Fernanda Itri mostra que o luto é uma longa viagem

“O LUTO NÃO É ETÉREO; ele é denso, opressivo, uma coisa opaca. O peso é maior de manhã, logo depois de acordar: um coração de chumbo, uma realidade obstinada que se recusa a ir embora. Eu nunca mais vou ver meu pai. Nunca mais. É como se eu só acordasse para afundar cada vez mais.”

Notas sobre o Luto,
Chimamanda Ngozi Adichie

De todas as experiências que temos na vida, o luto talvez seja aquela que mais nos despersonaliza, que mais nos tira da gente aquilo que a gente é. O luto tem pouco a ver com uma ferida aberta, como muitos nos fazem crer. Ele é mais uma eterna presença de um nada, de um oco, sem matéria para nos traduzir. Para pensar, dizer e expressar o luto buscamos diversas imagens e acredito que Fernanda Itri conseguiu encontrar uma das melhores formas para nos dizer dessa experiência: o luto é uma espécie de surdez. 

Eu achei importante começar assim esse texto porque embora esse seja o título do livro, no decorrer da leitura pode ser que um leitor mais distraído não guarde isso em mente. E como a autora trouxe isso com tamanha força, quero usar um pedacinho do meu texto para ressaltar esse ponto. 

O luto é uma espécie de surdez, diz Fernanda Itri na sinopse do livro, porque “talvez o silêncio seja sinônimo do luto”. Mais que isso, a ausência se traduz numa matéria que falta, num objeto que não está, ou “no vazio deixado por uma voz que já não se escuta mais, pelo barulho dos passos que já não há, por um coração que já não bate.” Luto não é falta, ou seja, ausência de som, mas a presença da falta de som. E é isso que você precisa saber antes de conhecer “Surdo”. 

O romance Surdo, de Fernanda Itri, conta a história de um sujeito chamado Camilo. Camilo é um homem que precisa encarar uma reviravolta que sua vida dá diante de uma perda: seu marido Suzu morreu em um acidente de carro com seus dois filhos gêmeos. O casal havia feito inseminação artificial em sua melhor amiga, Maria Alícia, também conhecida como Malícia. Malícia também estava no carro que sofreu o acidente e também faleceu ao lado de sua filha pequena. 

A partir desse ponto, Camilo vai embarcar numa espécie de “road story”, uma jornada de autodescoberta, mas também de redescoberta do seu passado, buscando reconectar memórias esquecidas, das mais simples do cotidiano aos grandes traumas de sua existência, assim como rever sua relação com as demais pessoas de sua história. 

Apesar de ser uma narrativa cheia de eventos e transformações, o mais feliz da história de Fernanda Itri está em sua capacidade de nos contar essa história como se estivesse ao nosso lado. Com muita sensibilidade e cuidado extremo, afinal ela está tratando de temas altamente complexos como adoção por pessoas LGBT, luto, morte e relações familiares, Fernanda nos conduz à história como se nos desse as mãos e nos levasse a ir conhecendo aquelas figuras, como, por exemplo, a sogra de Camilo, também entulada:

“Por pior que esteja o seu dia, por mais triste que você esteja, um bolinho de chuva será sempre capaz de confortá-lo e de criar uma memória afetiva.”

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Em termos formais, Surdo alterna momento presente com flashbacks do passado que se intercalam de maneira súbita, sem aviso e sem divisão entre parágrafos. Isto nos dá um efeito bastante interessante que é próprio da memória que salta de um tema para outro sem dar muitos avisos. Isso permite que, enquanto acompanhamos o personagem Camilo, podemos entender também como funciona o fluxo do seu luto: o presente que salta a todo instante para a verdadeira dor que está viva, a da perda de sua família. 

Além do mais, Surdo possui também uma característica interessante que é a organização dos seus capítulos. Sempre intitulado por um verbo, o livro vai nos mostrando essas fases e esses momentos de sofrimento/cura: Despertar, consolar, balançar, fluir, regressar…exceto um único capítulo que recebe o título de “vida”. 

Podemos também destacar algumas das referências literárias da obra, como o russo Mikhail Bulgákov: 

“O problema não é que o ser humano é mortal, o problema é que ele é subitamente mortal.”

Lewis Carroll com Alice no País das Maravilhas:

O livro Alice no País das Maravilhas é um livro de lógica?

– Lógica da vida. Veja só você: estava vivendo sua rotina e, de repente, caiu em um buraco, e o mundo ficou de cabeça para baixo, e desproporcional, e estranho, e as lágrimas poderiam te afogar. Não querendo se afogar, você as reteve. Acredito que eram elas que estavam obstruindo seus ouvidos, por isso estava surdo. Ontem você as deixou sair, sem medo de se afogar, e assim voltou a ouvir. Mas a resposta  sobre quem você é agora, depois de tudo pelo que passou, ainda é um problema, não é?

E, principalmente, o livro O mito de Sísifo, do franco-argelino Albert Camus, de onde sai uma das principais inspirações para o título do livro:

“o mundo é surdo, não é? A gente grita, mas ele não nos ouve. O absurdo da existência, no entanto, grita mais alto do que nós e nos deixa tão surdos quanto o mundo. É uma insanidade, um bando de surdos tentando se relacionar com um mundo que também não os escuta.”

Porém, diferente do mito de Sísifo que se vê obrigado a todos os dias a empurrar uma pedra morro acima e vê-la cair novamente todos os dias, Camilo, em Surdo, vai aprendendo como conduzir sua vida e mesmo que tenha no coração um pouco da banalidade da vida sem sentido, ainda assim consegue construir uma vida, montar um legado e inspirar outras gerações, tanto no seu amor pelo mundo quanto no seu amor pelos livros. 

Surdo é um livro inspirado e inspirador. Fernanda Itri encontra caminhos para contar essa história que ressoa na gente, doi um pouco, mas aponta novas trilhas. Que você possa também mergulhar nessa história. 

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