Por que Franz Kafka desistiu de entregar sua Carta ao Pai?

Um livro de poesias que gosto muito se chama As Partes Nuas, de Claudia Schroeder. Nele, Claudia mostra em seu livro, entre outras coisas, como a intimidade é uma parte nossa que serve para ser direcionada ao outro e que é sempre revelada por nuas partes nossas. De certa forma, ela desvenda que é pelas nossas partes nuas que nos conectamos com esse outro sempre secreto. Isso se dá, porém, sempre de maneira fracionada, na medida em que vamos, aos poucos, nos oferecendo, cedendo e dividindo quem somos.

Veja nosso papo sobre o assunto:

O filósofo italiano Giorgio Agamben, eu seu livro A Ideia da Prosa, faz uma potente descrição do amor, ou melhor, da “ideia de amor” também como algo que não revela completamente os seres, mas que se dá em um desvendar que trata de o ser, ao mesmo tempo, “secreto e murado”. Diz ele:

“Viver na intimidade de um ser estranho, não para nos aproximarmos dele, para o dar a conhecer, mas para o manter estranho, distante, e mesmo inaparente – tão inaparente que o seu nome o possa conter inteiro. E depois, mesmo no meio do mal estar, dia após dia não ser mais que o lugar sempre aberto, a luz inesgotável na qual esse ser único, essa coisa, permanece para sempre exposta e murada”.

Podemos falar da Carta ao Pai, do Kafka, então, como um registro ambíguo: de um lado, uma tentativa de mostrar uma intimidade, algo secreto que dissesse algo muito essencial do autor, porém, ao mesmo tempo, o esforço de justamente transformar essa parte tão íntima em algo público, um íntimo coletivizável, publicável.

Quem gosta dos romances do Kafka está acostumado a perceber que suas histórias não são lá muito íntimas. Transformar-se num inseto, passar por um processo público ou procurar um castelo inacessível não é o exemplo que temos de uma literatura intimista. A questão é que, se mergulhamos no interior dessas obras, podemos perceber que as três personagens de suas principais obras são capturadas em momentos de fragilidades de suas intimidades;

– Gregor Samsa se transforma em inseto enquanto dorme em A Metamorfose

– Joseph K. recebe notícias de seu processo ainda na cama, de pijamas, no Processo

– K. Descobre que precisa ficar na terra, quando mente que é agrimensor, após tirar uma soneca na hospedaria/taberna, no Castelo

Toda a literatura do Kafka tem um pouco disso: de uma intimidade estranha, uma intimidade meio impessoal, de ninguém. Pensando nisso, eu fui procurar o que seria o avesso dele próprio. E isso estaria nos relatos íntimos, nos diários, nas cartas e na famosa Carta ao pai.

Kafka e seu pai

E a Carta ao Pai, um relato dos mais íntimos, o que nos diz sobre Kafka?

Essa carta foi escrita por ele quando tinha 36 anos, momento em que tenta se reencontrar com o pai e enviar pra ele um pouco o que sentia e sentiu sobre si. Escreveu a carta em dois dias, entre 19 e 20 de novembro, exatamente 50 páginas muito confessionais. Diz-se que chegou a colocar a carta na cabeceira do pai, mas depois mudou de ideia, retirou e nunca entregou. Ele diz que seu pai poderia esmagá-lo com um inseto, que seu pai silenciou sua fala desde sempre, embora ele não fosse se tornar um grande orador de qualquer forma.

Por que Kafka não entregou a carta para seu pai?

Os motivos para Kafka não entregar a carta podem ser muitos. Resumo, aqui, essas múltiplas possibilidades em duas: ou elas eram íntimas demais ou não eram nada íntimas. Sendo a carta um relato tão confessional, mas também a manifestação pública dessa intimidade, Kafka pode ter, por um lado, achado que tinha ido longe demais ou, quem sabe, não dito nada do que sentia. Kafka pode ter considerado que foi além do que se pode ao escrever uma carta, ou seja, revelou um segredo seu que, tanto não queria que fosse compartilhado, como não era justo com seu pai revelar. Pode também, em viés oposto, ter achado que não foi íntimo e sincero o suficiente, sendo a carta só o resultado frágil de um sentimento forte demais que ele vivia por dentro. Sendo assim, a carta pode ter dito demais e, por isso, não merecia o mundo…ou seu pai. Ou dito de menos e também não devesse ganhar forma real. Será?

Entre as intimidades, muito secretas ou pouco secretas, Kafka conta que seu pai deixava-o ver três mundos:

– um que ele era um escravo que vivia sob leis que tinham sido inventadas só pra ele

– outro que era um mundo distante do dele em que o pai só queria mandar, dar ordens e governar

– e um último mundo onde as pessoas viviam felizes e livre das regras da obediência

Reconhecer esses mundos do seu pai em sua direção foi essencial para que surgisse um Kafka escritor que pensou a política, a burocracia e a lei com tanta força. Sobre seu pai, a Carta é uma tentativa dupla de reconciliação e vingança, de ódio lançado e tentativa de perceber como sentia amor por aquele que o criou. Em determinado momento, ele traça um pai que escapa no resto da carta. Um pai de amor. Que com suas idiossincrasias tentou, a seu modo, amar. Diz ele:

Felizmente também havia exceções a isso, na maior parte das vezes quando tu sofrias em silêncio e o amor e a bondade superavam com sua força qualquer oposição e comoviam de maneira imediata. Embora isso fosse raro, era maravilhoso. Por exemplo, quando nas tardes quentes de verão eu te via dormir um pouco na loja, cansado, depois do almoço, com os cotovelos apoiados no balcão, ou quando tu chegavas aos domingos, estafado, para visitar-nos nas férias de verão; ou a vez em que, mamãe estando gravemente doente, tu te apoiaste nas estantes de livro, trêmulo de tanto chorar; ou quando, na minha última doença, tu vieste em silêncio me ver no quarto de Ottla, ficaste parado na soleira da porta, apenas esticaste o pescoço para me avistar na cama e, por consideração, só fizeste um cumprimento com a mão. Nesses momentos, eu ia me deitar e chorava de felicidade, e choro ainda agora enquanto escrevo.

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