[Postado pelo Indique um Livro]
Dia 18 de maio é o dia da Luta Antimanicomial. Ainda que seja movimento conhecido dos profissionais de saúde e militantes, para a maioria das pessoas é uma data desconhecida. Partindo de uma proposta humanizadora, o movimento antimanicomial luta pelo fim das internações em manicômios e chama a atenção para as violações de direitos humanos ocorridas nestes espaços, bem como propõe uma visão diferenciada da doença mental, superando a ideia do portador de sofrimento mental como inábil para a vida pública e social. É, em suma, uma proposta de reformulação do sistema psiquiátrico.
O livro “Holocausto Brasileiro”, de Daniela Arbex, conta a história e os horrores daqueles que viram-se privados de liberdade e violentados no maior hospital psiquiátrico do Brasil, em Barbacena. Jogados nos trens com destino ao complexo, estas pessoas eram esquecidas ali. Leia, a seguir, uma resenha deste livro essencial:
Termino de ler o “Holocausto Brasileiro” de Daniela Arbex e sou inundada por um desespero que poucas vezes senti. Lendo as últimas 50 páginas do livro, não conseguia decidir se queria ler até o final o excelente relato sobre o Colônia ou se preferia fechá-lo e não saber mais das torturas, das tragédias, do assassinato de 60 mil pessoas inocentes. Acabei lendo até o fim, pois percebi que é exatamente isso que um livro como esse deve fazer: sensibilizar, dar o choque necessário para que percebamos que não podemos mais negar que, no Brasil, construímos nosso próprio campo de concentração.
O Colônia, como era conhecido o Hospital Psiquiátrico de Barbacena, foi o palco de uma das maiores tragédias da história brasileira. Fundado em 1903, abrigou todo o tipo de indesejados: prostitutas, órfãos, mulheres cujos maridos decidiram fugir com a amante ou que desobedeciam a seus homens, andarilhos, doentes, homossexuais… Por detrás dos portões do local que deveria cuidar de pessoas com distúrbios psiquiátricos, estavam trancafiadas as vidas que, por um ou outro motivo, não valiam nada. Mesmo que 70% dos pacientes não tivesse qualquer diagnóstico de doença psiquiátrica, era preciso pouco para ser jogado no “trem dos loucos” em direção à Barbacena. Sair do Colônia, porém, era bem mais difícil que entrar nele e, uma vez lá dentro, o que se via eram fezes espalhadas pelo feno que servia de cama para os internos, montes de cadáveres jogados pelo pátio, grades, moscas, lobotomias, eletrochoques, tortura, sofrimento, dor, morte.
O livro narra detalhadamente as histórias dos ninguéns que foram esquecidos em Barbacena. É o caso de Dona Geralda, que aos 14 anos foi estuprada pelo patrão na casa de família onde trabalhava e, quando o mesmo descobriu sua gravidez, a despachou para o Colônia. Lá, teve seu filho, que rapidamente foi levado para longe dela. Depois de 45 anos sofrendo por não saber sequer onde estava seu menino, os amigos do Batalhão de Bombeiros onde João Bosco trabalhava localizaram Geralda e promoveram o encontro dos dois. Sueli Rezende, que também deu à luz dentro do Hospital, teve sua filha tomada de si e morreu antes de poder reencontrá-la. Quando estava grávida, passava fezes sobre a barriga para que os funcionários não chegassem perto dela e de sua criança. Passou a vida inteira falando da filha, e não havia um ano sequer em que não se lembrava de seu aniversário. Sônia Maria da Costa, que conseguiu sair do Colônia e ir para uma residência terapêutica, às vezes usa dois vestidos; quer se certificar de que está com roupas, já que passou anos andando nua dentro do Hospital.
Após entrar em contato com todas essas histórias, me surpreende que sejamos capazes de chamar de loucos as vítimas desse genocídio, e não o sistema doente que fez com que fosse possível que, por anos, o Colônia continuasse matando e torturando milhares de pessoas a seu bel prazer. O Hospital de Barbacena representa toda uma ideologia medicalizante, patologizante e excludente que convenientemente esquece que ser louco ou normal é uma questão de perspectiva. O “Holocausto Brasileiro” cumpre seu papel de mostrar que o louco, tão temido por nós, “normais”, sofre lucidamente as mazelas da exclusão lhes impusemos. 60 mil morreram em Barbacena, sem contar os que morreram simbolicamente desde o instante em que foram jogados naquele depósito de gente. Daniela Arbex revive aqueles que tentamos calar e mostra que, por trás da loucura, há gente e por trás da morte, há a vida pela memória que se perpetua.
[Matéria original no link: http://indiqueumlivro.literatortura.com/2013/12/26/holocausto-brasileiro-de-daniela-arbex/]