A verdadeira rebeldia de um filme não está no quão revolucionário ele é enquanto forma, montagem, roteiro, atuações, etc, mas no quanto ele consegue absorver a realidade e propor um jogo com e contra ela. No caso de “A Vergonha de Patty Smith” (tradução nossa), que também é conhecido como “O Caso de Patty Smith”, o grande mérito está em fazer o filme o mais tradicional possível para revelar os absurdos da lei anti-aborto.
O filme gira em torno da jovem Patty Smith, uma menina do interior que vai morar em Los Angeles e trabalhar como datilógrafa. Ela sai uma noite com seu namorado, com quem forma um casal absolutamente tradicional modelo margarina sonho americano, até que eles se envolvem num acidente de carro com uma gangue local. Após um desentendimento, eles são perseguidos e Patty é violentamente estuprada. Grávida de seus abusadores, ela peregrina pelas instituições norte-americanas em busca de interromper aquela gravidez indesejada, mas vai encontrando limitações que a levam ao desespero.
O filme retrata com dureza e precisão os caminhos de Patty Smith cujas escolhas são todas traçadas por homens em lugares de poder: um médico pró-aborto, mas que segue a lei, um médico que faz aborto, mas explora as pacientes, um padre que sentencia a jovem a morrer no inferno, um mafioso que faz a negociação, um farmacêutico que não está apto, mas ainda assim faz abortos e, por fim, um policial que investiga casos de homocídio.
Sua própria vizinha e amiga fala disso ao ser perguntada porque não denunciaram o caso: “você não sabe o que é ser mulher nessa situação”. Como sempre, homens decidindo, escolhem e punindo mulheres.
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Assumindo uma postura pró-aborto radical em 1962, ou seja, poucos anos após a pílula anticoncepcional ter sido aprovada, em 1960, o filme é revolucionário em sua estrutura tradicional que é entremeada por um narrador que nos passa dados alarmantes sobre a tragédia dos abortos ilegais estadunidenses. Sempre que acha necessário, ele interrompe a narrativa realista para nos situar que a vida de Patty Smith é apenas um retrato num panorama complexo e cruel.
E o filme não é sútil, é um olhar bastante sóbrio sobre todas as consequências da lei antiaborto nos corpos das mulheres. Além do que, o filme propicia ótimos diálogos com informações sobre a preservação da vida das mulheres e dos bebês em legalização do aborto, assim como sobre a lei pró-aborto em outros países como na Suécia.
Patty Smith é a vítima do filme, mas ela representa um dos recortes dos impactos da proibição do aborto e os caminhos perigosos de ser jogada na insegurança e na ilegalidade por algo que poderia ser feito e evitado por meios legais simples. E o mais importante do filme foi não tentar inventar a roda, mas ser conservador para ser radical e mostrar como essa questão afeta, inclusive, jovens meninas brancas, de classe média, das mais tradicionais e religiosas possíveis. Agora, imagina quando atravessamos esse caso com questões de classe e raça?
A Vergonha de Patty Smith (1962) é um retrato de um tempo que não passa ou não cessa de retornar. Ele não está disponível no Brasil ou em português, mas pode ser visto gratuitamente no Youtube na língua original. Veja: