A religião ocupa um espaço curioso em Avatar, e está intrinsecamente ligada à sua temática ambientalista. A conexão dos Na’vi com Pandora não é algo puramente espiritual, mas sim físico. A comunhão com a entidade Eywa se dá, literalmente, através de um cabo, que dá aos habitantes do planeta certo grau de controle sobre as outras criaturas daquele mundo.
Em suma, é uma visão utilitarista e tecnocrata. A natureza e a espiritualidade Na’vi importam dentro daquele universo, pois são “reais” e mensuráveis, como aponta Grace (Sigourney Weaver) antes dos militares atacarem a árvore ancestral no primeiro Avatar. Os vilões da franquia não são vilões por destruírem a natureza, são vilões por estarem destruindo uma natureza útil no sentido mais materialista da palavra.

Em Fogo e Cinzas, essa relação ganha outros contornos diante das diversas crises encaradas pelo seus personagens, e da adição de uma tribo Na’vi pouco interessada em Eywa e afins, mas sim no poder destrutivo do fogo, subvertendo a lógica apresentada até então de uma relação de controle harmonioso entre as partes. Nas mãos da nova antagonista, a líder do clã Mangkwan Vaarang (Oona Chaplin), até uma frase famosa da franquia ganha contextos sinistros, ao falar “eu vejo você” para o Coronel Quaritch (Stephen Lang), que segue em sua missão de captura Jake Sully (Sam Worthington).
Se os Mangkwan desestabilizam a visão geral desse mundo, a família Sully encara seu próprio abalo em uma dimensão mais pessoal, diante da morte do filho pródigo Neteyam (Jamie Flatters) em O Caminho da Água. Jake foca na guerra com os humanos, coletando armamentos e agindo mais como um comandante do que como pai. Neytiri (Zoe Saldana) segue os ritos de luto Na’vi, enquanto Lo’ak (Britain Dalton) se sente culpado pela morte do irmão.
Dos três filmes até o momento, Fogo e Cinzas é o menos interessado em “passear” por Pandora e apresentar novas paisagens, mas sim em testar seus personagens e o ecossistema de Pandora como um todo, que se encontram profundamente entrelaçados, e seus elementos de ligação ausentes ou fora de eixo. Neytiri perdeu o arco e flecha do pai, Jake reluta com sua posição de Toruk Makto, o grande guerreiro, Lo’ak e a baleia tulkun Payakan entrem em conflito com as tradições que impedem uma resistência eficaz e Kiri (Sigourney Weaver), apesar de sua relação singular com Eywa, encontra resistência da entidade.

É simbólico que após a primeira grande cena de luta do filme a família Sully se fragmente, e é mais simbólico ainda que esse afastamento dure pouco, assim como alguns dos conflitos apresentados acima, como o de Neytiri, cuja recuperação do arco acontece sem grande peso emocional que deveria ter. Apesar de ser o maior até então, Fogo e Cinzas é também o mais apressado da franquia, buscando o mais rápido possível ajeitar o cenário para a inevitável batalha no clímax, que é muito similar ao de O Caminho da Água.
É compreensível – James Cameron é o diretor conhecido pela ação e pelos grandes momentos – mas o que faz esse terceiro capítulo se destacar dos demais está nos momentos mais íntimos e, por vezes, sombrios, como a cena entre Jake e Spider (Jack Champion) que reencena o quase sacrifício de Isaque pelas mãos do pai, Abraão, deixando ainda mais evidente o aspecto religioso da franquia como um todo.
Nessa cena em específico, Cameron parece querer recuperar um pouco do aspecto mais espiritual da religião. O que impede a mão de Jake não é um deus ex machina pandoriano, mas sim ele mesmo, após pedir à Eywa um sinal, ele reconhece que o caminho a ser tomado não é o do sacrifício de um jovem.
Contudo, a lógica belicista logo retorna. A grande conquista de Kiri diante de Eywa é convencer a entidade de que ela precisa lutar. Lo’ak e Payakan, similarmente, tem seu arco resolvido ao convencerem outros tulkuns a entrarem na guerra. Se Pandora é sagrada, é porque pode lutar; se Eywa guia seus filhos, é para que sejam eficazes no campo de batalha

Nesse sentido, a vitória contra os humanos é menos importante do que consolidar uma espécie de domínio sobre Eywa, com uma roupagem “ecológica”, mas não menos supremacista. Mesmo que Avatar, na superfície, seja sobre o conflito entre aliens e humanos, a franquia se revela cada vez mais ser sobre conflito entre dois tipos de tecnologia e duas formas distintas de instrumentalização do mundo. De um lado, a tecnologia humana, explícita, mecânica, predatória; do outro, a tecnologia Na’vi, orgânica, supostamente espiritualizada e legitimada pelo discurso da harmonia, mas igualmente orientada para a eficiência e para a dominação. O que restará de Pandora quando tudo precisar ser útil?
Mas claro, Fogo e Cinzas nem pensa nisso, o foco é ver os arrogantes humanos amargando, pela terceira vez, uma derrota nas mãos dos nativos de modo, como sempre, espetacular e catártico. Cameron, como sempre, sabe capturar nossas emoções mais imediatas, mas até quando isso será capaz de suprimir as interrogações mais profundas sobre este universo?

