Roberto Bolaño, um dos maiores escritores sul-americanos da literatura, faleceu de insuficiência hepática em 2003. Tinha 50 anos. Isso é curioso, já que, dentre as funções primordiais do órgão, está a filtragem do sangue, ou seja, daquilo que circula por baixo da pele ativando os vasos, irrigando os pensamentos e hidratando a carne. Poeta, Bolaño pode ser visto como “fígado” das Américas, não pode?
É o que o espetáculo “Deserto”, em cartaz no Sesc Santana, em São Paulo, após longa temporada no Rio, vai metabolizar. O monólogo tem dramaturgia e direção de Luiz Felipe Reis, e foge dos formatos comuns às biografias para, em certa medida, se transformar em uma fábrica química, ou melhor, em um processador de nutrientes poéticos, já que a matéria em cena (a poesia) serve tanto ao biografado quanto ao público. Não há tecido que separa pois sua cadência vaza pelos poros de Renato Livera, bambeia entre a escrivaninha e a poltrona, posicionadas em lados opostos do palco e, sobretudo, se amontoa na enorme folha em branco que vai do chão ao teto do teatro.
Em “Senhora dos Afogados”, de Nelson Rodrigues, ser fiel à ruína é tanto a vingança, quanto o perdão
Cenógrafos da peça, André Sanches e Débora Cancio preenchem o papel vazio, esse terror dos escritores, com cores distintas: ora parece o deserto pessoal de Bolaño, ora se parece como uma enorme escada rumo ao céu; em alguns momentos, a sensação é de estarmos olhando para dentro de uma boca aberta. Mas, ao longo do espetáculo, fica mais visível a forma do espaço. Estamos diante do abismo.
À beira dele, Bolaño passa a limpo a vida que nunca aconteceu: a liberdade do Chile; a exaltação de Salvador Allende, o líder social-democrata responsável por filtrar o totalitarismo do país até ser deposto por Augusto Pinochet; a vivacidade da democracia como ideal de poesia; sua saúde em pleno vigor; e o reconhecimento de sua obra. Todos esses órgãos compõem o corpo do sonho de Bolaño. E também seu abismo exterior.

A bela criação de vídeo de Julio Parente e a iluminação de Alessandro Boschini bombeiam a poesia do escritor pelas vísceras do ator. Se toda pesquisa pode ser insuficiente para corporificar alguém que realmente existiu, a radiografia de Renato Livera se dá a partir da alma de Bolaño, que é universal e atemporal. A poesia não é palavra, embora utilize as letras para existir. E os poemas, por sua vez, tampouco podem ser sangrados como os seres humanos podem. Há nesta confluência de mistérios a face do deserto.
O poeta é o personagem que sustenta a liberdade, a afronta, a trincheira, o campo… a viagem. O poeta ultrapassa o tempo para formar o que não deve ser civilizado e “neoliberalizado”. Ele filtra as impurezas sociais para devolver ao corpo humano o estado que lhe é roubado desde o nascimento.

Portanto, a beleza poética de “Deserto” está na bile do teatro. E, assim, Luiz Felipe Reis e Renato Livera armazenam o escritor como personagem para além da própria literatura. E da América Latina.
Bolaño foi preso. Por pouco, não foi atirado ao mar junto com outros perseguidos políticos. Era artista comprometido em “desfuncionalizar” a arte e apresentar o abismo como sendo um útero. Sua obra, se é que pode ser regulada, trata dos desaparecidos e da busca em encontrá-los.
Em 2025, tal figura não descansa. Ainda há mulheres sendo mortas por “homens de bem”, a pobreza se espalha e artistas são expelidos da sociedade enquanto os povos latino-americanos resistem às intervenções dominantes, seja na economia, na política, na guerra, no tarifaço… Em um lance genial no uso de câmera, Roberto/Renato conversa consigo mesmo, como se dividisse os tempos e os corpos. A gravação de vídeo é tão sincronizada com a atuação de Renato que o diálogo entre passado e presente não aparenta a ruptura, e sim, faz parte do aviso: a história segue seu curso. Mas a poesia, seja na forma de poema ou de espetáculo, jamais era insuficiente. É o tempo em si mesma.
Ainda que Roberto Bolaño tenha muitos textos capazes de acolher o arrebatamento do final de “Deserto”, são os versos de outro poeta que removem as toxinas do tempo-espaço, da nacionalidade e da morte para absorver aquele silêncio de Livera: “você me abre seus braços, e a gente faz um país”.
Ficha técnica
Direção e dramaturgia original Luiz Felipe Reis
Baseada em fragmentos da vida e obra de Roberto Bolaño
Atuação Renato Livera
Direção assistente Julia Lund
Interlocução dramatúrgica José Roberto Jardim
Direção de movimento e preparação corporal Lavínia Bizzotto
Direção musical e criação sonora Pedro Sodré e Luiz Felipe Reis
Cenografia André Sanches e Débora Cancio
Figurino Miti
Criação de vídeo Julio Parente
Iluminação Alessandro Boschini
Assistente e operação de vídeo Diego Ávila
Técnico e operação de luz Rodrigo Lopes
Operação de Som Pedro Sodré (semanas 1, 2, 4 e 5) e Gabriel Lessa (semana 3)
Design gráfico Bruno Senise
Fotografia de estúdio Renato Pagliacci
Fotos de divulgação Renato Mangolin
Cinematografia Chamon Audiovisual
Direção de produção Sérgio Saboya e Silvio Batistela (Galharufa)
Produção executiva Roberta Dias (Caroteno Produções)
Produção local Júlia Tavares
Redes sociais e campanha digital Lead Performance
Idealização e coprodução Polifônica
Proponente JL. Produções Artísticas Ltda.

