Em Renda-se, a protagonista, uma atriz emergente e mãe solo, luta para equilibrar as exigências de sua carreira, o cuidado de sua filha recém-nascida e a pressão esmagadora das expectativas sociais. Vemos essa mulher, fragmentada pela falta de apoio e pelo julgamento implacável da sociedade, tentando sobreviver desesperadamente a um sistema que frequentemente falha em dar suporte a mães em crise. A peça começa com a protagonista na prisão, após ter sido separada de sua filha há 11 anos, e revela gradualmente os eventos que a levaram a esse momento trágico.
Com uma narrativa cortante e emocionalmente visceral, Renda-se (Surrender, 2024) consolida Sophie Swithinbank como uma das vozes mais potentes do teatro contemporâneo, ao mesclar crítica social aguda com uma protagonista profundamente humana e multifacetada. A estrutura não-linear, longe de ser um mero recurso estilístico, amplifica o desespero e a fragmentação da personagem, uma mãe solo esmagada pela ausência de apoio e pelo julgamento implacável de uma sociedade que a condena antes de compreendê-la. Swithinbank domina a arte do subtexto, transformando cada diálogo e cena íntima em um manifesto sobre resistência e vulnerabilidade, enquanto questiona com maestria os limites entre rendição e libertação. A peça não somente expõe falhas sistêmicas brutais, mas o faz com uma urgência que ecoa no espectador muito depois do último ato, um triunfo da dramaturgia engajada e poeticamente devastadora.

Martha Nowill entrega uma performance arrebatadora em Renda-se, traduzindo com maestria a complexidade da protagonista criada por Sophie Swithinbank, uma mulher dilacerada entre a maternidade, a carreira e o peso de um sistema hostil. Com precisão técnica e emocionalidade crua, Nowill evita facilismos, construindo uma personagem que oscila entre a resistência obstinada e o esgotamento silencioso, sem jamais cair no melodrama. Sua interpretação captura com sutileza as nuances de uma mãe solo à beira do colapso, transmitindo tanto a ferocidade quanto a fragilidade de quem luta contra a invisibilidade social. Cada gesto, pausa e olhar carrega camadas de subtexto, transformando a dor individual em um retrato coletivo pungente.
A cenografia e luz em Renda-se constituem uma narrativa visual tão potente quanto o texto de Swithinbank, elevando a fragmentação emocional da protagonista a uma experiência sensorial impactante. A cenografia minimalista, composta por uma placa de vidro que evoca a cela prisional, um pedestal com vapor, um banco móvel e um casaco abandonado, opera com eficiência: cada elemento de metal frio e linhas austeras reflete não apenas a aspereza da sociedade que cerca a personagem, mas também a solidão ossificada de sua jornada.
O vidro, ao mesmo tempo que aprisiona, torna visível sua dor, criando uma metáfora espacial da maternidade sob vigilância. Paloma Dantas, no desenho de luz, converte o palco em um organismo vivo, esculpindo a cena com cortes abruptos de luz que simulam os flashbacks da memória e a desconexão da realidade, como se cada clarão ou sombra fosse um eco do colapso interno da protagonista. A iluminação não apenas acompanha, mas revela a narrativa, transformando vazios em significados e luzes em lâminas. Juntos, cenário e luz transcendem a função cênica para se tornarem cúmplices da dramaturgia: um sistema opressor materializado em formas e sombras, onde até o ar parece carregar o peso do julgamento social.

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Fernanda D’Umbra conduz Renda-se com mão firme e sensibilidade aguda, realizando a proeza de harmonizar a força crua do texto de Swithinbank com uma encenação que é, ao mesmo tempo, visceral e poeticamente estilizada. Sua direção demonstra um entendimento profundo da fragmentação narrativa e emocional da peça, traduzindo-a em cenas que oscilam entre o íntimo e o universal com fluidez impressionante. D’Umbra não somente potencializa a performance arrebatadora de Martha Nowill, dando-lhe espaço para explorar cada camada da personagem, mas também integra com maestria os elementos cenográficos e de iluminação como extensões narrativas da protagonista. Cada escolha cênica, reforça o tema central da peça: a maternidade sob cerco em uma sociedade implacável. Com um ritmo que alterna entre sufocante e lírico, a diretora cria uma experiência teatral que não se contenta em apenas contar uma história, mas sim em imergir o público no turbilhão psicológico e social da personagem. Uma direção que não serve ao texto, mas dialoga com ele em pé de igualdade, transformando Renda-se em um espetáculo tão urgente quanto inesquecível.
Renda-se emerge como um fenômeno teatral completo, onde texto, atuação, cenografia, luz e direção convergem em uma experiência artística de rara potência e coerência. Sophie Swithinbank entrega uma dramaturgia que corta como um bisturi, expondo as entranhas de uma sociedade que fracassa em acolher as mães solo, enquanto Martha Nowill encarna essa dor com uma performance que equilibra força e vulnerabilidade de modo eletrizante. A cenografia minimalista e a iluminação incisiva de Paloma Dantas materializam poeticamente a claustrofobia social da protagonista, transformando o palco em um espaço de confronto entre o íntimo e o político. Sob a direção precisa e sensível de Fernanda D’Umbra, todos esses elementos se articulam sem hierarquias, criando um espetáculo que não apenas denuncia, mas encarna a crise da maternidade contemporânea. Renda-se é mais que uma peça, é um espelho quebrado, cujos cacos refletem, com beleza e ferocidade, as contradições de um mundo que exige tudo das mulheres, mas lhes nega o essencial. Um trabalho que ressoa como um grito necessário e, ao mesmo tempo, como uma obra-prima da linguagem teatral.
SERVIÇO:
Temporada: 13 de junho a 06 de julho de 2025
Local: Auditório do Sesc Ipiranga
Horários: Sextas-feiras, às 21h30; sábados, domingos e feriados, às 18h30
Classificação Indicativa: 16 anos | 70 minutos |
Ingressos: R$ 50 (inteira), R$ 25 (meia), R$ 15 (credencial plena)
Venda: Portal do Sesc SP, bilheterias das unidades e App Credencial Sesc SP
https://www.sescsp.org.br/unidades/ipiranga/
FICHA TÉCNICA:
Escrito por Sophie Swithinbank, em Parceria Criativa com Phoebe Ladenburg
Com Martha Nowill
Vozes em Off: Sandra Corveloni (Jean) e Fernanda D’Umbra (Justiça)
Direção: Fernanda D’Umbra
Tradução: Betina Rodrigues
Cenografia: Diego Dac
Desenho de Luz: Paloma Dantas
Figurino: Ofélia Lott
Trilha Sonora: Sérgio Arara
Saxofone: Marcelo Monteiro
Preparação Corporal: Gabriel Malo
Operação de som: Cauê Andreassa
Operação de luz: Paloma Dantas
Fotografia: Edson Kumasaka
Assessoria de Imprensa: Rafael Ferro e Pedro Madeira
Coordenação de Direitos Autorais e Tradução: Tiago Martelli
Idealização: Tiago Martelli
Direção de Produção: Cicero de Andrade – Mosaico Produções
Produção: Dani Simonassi e Tiago Martelli