Entre Dois Mundos é um filme que expressa dores complexas de soluções simples: o fim da exploração do trabalho
Uma mulher caminha pela cidade. Aparenta nervosismo. Ela entra atabalhoadamente em uma repartição pública. Aparentando nervosismo, ela reclama que pode perder um benefício social por conta de uma burocracia. A tecnocrata pede calma e ela diz que não tem como ficar calma sabendo que seus filhos podem passar necessidade.
Neste ponto, a gente acredita que esta mulher será a protagonista do filme, mas eis que, no fundo, outra mulher a observa. É a personagem interpretada por Juliette Binoche que está ali dócil para procurar emprego após se divorciar e mudar de cidade. Após 20 anos fora do mercado, ela só se qualifica para trabalhos de serviços gerais. Limpeza mesmo.

O que se desenha é justamente a possibilidade de cruzamento entre essas duas mulheres: uma acostumada ao trabalho precarizado e outra entrando nele. Mas este é o ponto de virada do filme: Juliette Binoche, na verdade, é uma escritora que simula esta vida para se aproximar de mulheres como a primeira para viver suas experiências e escrever um livro sobre as condições deste trabalho invisibilizado na França.
O que ela não esperava é que, diante dessas vidas, não só ela viveria as experiências, mas se fundiria nelas, conhecendo uma espécie de solidariedade e coletividade em meio aos horários loucos, as jornadas triplas e as explorações. No entanto, não se pode simular pobreza e é aí que o filme se torna interessante, pois ele reposiciona o conceito tão mal usado de “lugar de fala”.
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Entre Dois Mundos confronta uma intelectualidade ou inteligência que acha que basta ter empatia e se colocar no lugar do outro para compartilhar suas vidas. Ao contrário, o filme expõe as fissuras sociais e coloca em jogo a ideia de que lugar de fala não é uma experiência que se possa passar ou emular, mas um conjunto de condições de vida que estão em jogo como gênero, classe, raça… Assim, não adianta viver uma vida tal como, mesmo que compartilhe as mesmas dificuldades: o “de onde se fala” não pode ser construído artificialmente.
O filme revela também que as classes sociais do capitalismo são abismos maiores que financeiros, educacionais, de formação, são castas intransponíveis ao mesmo que altere as estruturas sociais que as compõem. Binoche, ao tentar se passar por uma faxineira, uma escritora pode realmente se aproximar e viver naquele microcosmos. Pode até sofrer com elas e dividir suas dores e alegrias, mas não estará realmente nele…

Essa contradição que muitas vezes não entra na cabeça de intelectuais e pesquisadores, ainda que sintam uma baita culpa de classe, se expressa na traição que pessoas mais pobres sentem quando descobrem a verdade: foram usadas como objeto de pesquisa, como ratos de laboratório.
Entre Dois Mundos é um filme que expressa dores complexas de soluções simples: ali todos são vítimas, embora alguns sejam privilegiados em um sistema feito para elas. Ninguém sai feliz do capitalismo.
Veja o trailer completo: