Ao escrever, João Cabral de Melo Neto, um dos maiores escritores do Brasil, buscava uma poesia áspera, “como um carro descendo por uma estrada muito mal calçada”, fazendo o leitor sacolejar de palavra em palavra. Em certo momento de “Poema”, o ator (Edjalma Freitas) conversa com João Cabral para mostrar que agora as estradas estão fechadas. Se quisermos prosseguir, será preciso achar outro caminho.
O espetáculo está em cartaz na sede da “A Próxima Companhia”, em São Paulo, e adapta o livro “Tetralogia da peste [+ dois tempos, uma cidade]”, de Antonio Martinelli, uma obra que tira a pandemia da Covid-19 de dentro das favelas, das covas e necrotérios em que inúmeros corpos negros, pobres, indígenas e de mulheres continuam guardados à espera de justiça:
[o medo segue sobrevoando
com os urubus
sobre o céu da Brasilândia!]
Agora, João
é maior o número de mortos,
mais peste,
menos bala.
Em cena, Edjalma será o corpo e a voz de quatro poemas do livro. Como o resgate do horror daqueles tempos passa pela memória e história, o teatro assume a frente dessa “reapresentação”, dessa volta no tempo sem que, necessariamente, a atualidade seja abandonada. O exercício é difícil. A poesia tem sua própria aspereza. Mas, para a transfusão, Quiercles Santana, o diretor do espetáculo, refoga a seguinte pergunta: “depois da pandemia da Covid-19, a poesia ainda é possível?”

Não só é, como carrega formas distintas, não maculada por verso, mas constantemente atingida por dores, pela política, pela idealização e a crítica porque, depois da pandemia, as fronteiras ficaram mais evidentes. “Não sair de casa”, por exemplo, foi privilégio; sobreviver, não. Já que
a cidade que abandonou
seus doentes,
em cima das macas,
seus mortos,
em cima das mesas.
[carnes para urubus
nas praças públicas].
Na boca de Edjalma, esse texto se torna o buraco na estrada. De palavra em palavra, o espectador é sacolejado por uma via crucis que a linda cenografia de Luciano Pontes trata de delimitar o palco na forma de uma cruz. O símbolo é genial porque a terra está condicionada ao poder, à cultura e à religião.

Cada ponta da trindade codifica a soberania do homem branco e de sua exploração, que permanece em curso, como uma epidemia incurável. Porém, o espetáculo não chuta a poesia das coisas em nome de uma “prosa” ferina ou militante. Pelo contrário, há respeito ao texto de Martinelli, e o trabalho de Edjalma vai ao encontro dessa dramaturgia áspera, propositalmente nua, sobretudo porque o teatro foi um dos gêneros da arte que mais sofreram com o lockdown em 2020. “Poema” nasceu como peça online. Edjalma lembra o fato em cena e, ao mesclar a sua voz ao eu-lírico dos textos, evoca personagens – incluindo-se enquanto artista – que precisam ser descobertos: “contemos os nossos mortos, os mortos de Manaós, um a um. Em números e nomes, em etnia”.
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A luz criada por Luciana Raposo é uma métrica importante para “Poema”, deixando à mostra o que parece mais simples. Tanto que, em dado momento, o ator toca fogo numa rosa com querosene. A beleza da cena está no ritual que faz a chama na tigela de barro queimar quase como um relógio da revolta e das ações necessárias para que a pandemia, seja ela na forma de um vírus biológico, violência policial ou extremismos totalitaristas, não infecte a memória do povo. Ou “será preciso a Brasilândia atear fogo no Brasil?”
A resposta vem do próprio ofício e de algo próximo da instrumentalização da memória por meio da arte. Mas, como espetáculo, “Poema” não é poesia, e sim aquele “carro descendo por uma estrada muito mal calçada”. Edjalma é ator. Isto é a parte que lhe cabe nesse latifúndio.
FICHA TÉCNICA
Idealização, criação e atuação: Edjalma Freitas
Texto: Tetralogia da Peste [+ Dois Tempos, uma Cidade] de Antônio Martinelli
Direção: Quiercles Santana
Trilha Sonora Original Composta: Pedro Huff e Tarcísio Resende
Cenografia e Figurino: Luciano Pontes
Iluminação: Luciana Raposo
Provocação Corpovoz: Henrique Ponzi
Design Gráfico: Hana Luzia
Vídeo (08 de janeiro) Montagem e Edição: Gabriel Sivieiro
Fotografia: Lucas Emanuel
Produção: Edjalma Freitas
Realização: Cia. do Ator Nu
SERVIÇO
Temporada: 13 a 22 de junho de 2025
Dias: sextas e sábados às 20h e domingos às 17h
Duração: 60 minutos
Valor do ingresso: 40,00 (inteira) 20,00 (meia-entrada)
Ingressos disponíveis no site: 50 ingressos por dia
Contato: @ciadoatornu @edjalmafreitas