Ursula K. Le Guin fala sobre a colonização e a violência de que os humanos são capazes, mas também sobre como resistir a ela
“Escrevo por não ter nada a fazer no mundo: sobrei e não há lugar para mim na terra dos homens. Escrevo porque sou um desesperado e estou cansado, não suporto mais a rotina de me ser e se não fosse a sempre novidade que é escrever, eu me morreria simbolicamente todos os dias”. Foi Clarice Lispector quem disse isso, no livro A Hora da Estrela – a mesma Clarice que, na clássica entrevista à TV Cultura pouco antes de sua morte responde à pergunta “Então por que continuar escrevendo, Clarice?” com “E eu sei?”, reforçando que “no mundo a gente não tá querendo alterar as coisas, a gente tá querendo desabrochar de um modo ou de outro”. Neste momento da entrevista, ela fala sobre Mineirinho, um de seus textos mais viscerais, sobre o assassinato de José Miranda Rosa pela polícia com treze tiros em 1º de maio de 1962.
Clarice está certa de que sua escrita não altera a ordem das coisas; não há, portanto, intenção em transformar o mundo, posto que o que é, é, e a literatura, como bem disse Manoel de Barros sobre a poesia, é um inutensílio: não serve para nada. Escrever sobre Mineirinho não muda o fato de que os treze tiros representam nada mais do que “a vontade de matar”. Ainda assim, Clarice escreve. Ela escreve porque saber que a literatura não muda o mundo não significa que não possamos imaginar outros mundos. É quase como um ato de rebeldia em que ter certeza da derrota é a única razão para continuar tentando – afinal, em um mundo como o nosso, o fracasso é a vitória e detestaríamos estar no lugar de quem venceu.
Este não é um texto sobre Clarice Lispector, mas é um texto sobre a imaginação. Sobre a urgência de seguirmos fracassando ao tentar mudar o mundo, sem abrir mão de imaginar outros mundos possíveis; e sobre a potência da literatura em nos fornecer as ferramentas necessárias para, diante da pretensa naturalidade das coisas, inventarmos, pela linguagem, outras leituras.
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Se é certo que este exercício é possível a partir de qualquer gênero literário, é também verdade que a literatura de ficção científica nos oferece aquele empurrãozinho extra pra que a gente pense fora da caixa e invente novos olhares para o mundo: do Big Brother de George Orwell em 1984 ao futuro de Ray Bradbury que, em Farenheit 451, nos apresenta um universo em que livros são proibidos, passando pela Cidade da Penumbra de Lolita Pillé em que ser feliz é mandatário, as distopias amplificam e exageram elementos que fazem parte do mundo “real”, nos emprestando lentes através das quais podemos olhar com mais desconfiança aquilo que nos parece natural. O estranhamento que essas obras produzem em nós é o que permite uma outra forma de aproximação com o nosso mundo, mais crítica e reflexiva.
Ursula K. Le Guin
Dentre os grandes nomes da ficção científica, Ursula K. Le Guin se destaca como uma das suas mais importantes vozes, ainda que ela já tenha dito preferir ser conhecida apenas como “uma romancista americana”. Nascida na Califórnia em 1929, publicou inúmeras obras através das quais fez uso da ficção especulativa para mobilizar importantes discussões acerca das práticas culturais, sociais e políticas do século XX, especialmente no contexto do imperialismo estadunidense.

Vencedora dos principais prêmios do gênero, como o Nebula e o Hugo, Ursula trouxe novos elementos ao universo sci fi – como é frequente quando autores(as) pertencentes a grupos minoritários se inserem em contextos majoritariamente marcados por perspectivas hegemônicas. Como mulher e feminista, Ursula K. Le Guin trouxe à literatura de ficção científica novas respostas – mas, mais do que isso, propôs novos problemas. É o caso de A Mão Esquerda da Escuridão, por exemplo, romance sobre um mundo onde o gênero não é uma categoria da organização social – o que nos permite refletir acerca dos modos como opera o nosso mundo, em que o gênero é central na gestão das vidas e relações.
Sobre o livro
Em Floresta é o Nome do Mundo, a autora nos apresenta outras inquietações. A história se passa no planeta Athshe, que com suas grandes florestas é casa de seres humanos com pouco mais de 1 metro de altura e corpos cobertos por pelos verdes. Com o colapso de uma Terra carente de matéria prima como grãos e madeira em razão do desmatamento desenfreado produzido por uma lógica de exploração da natureza pelo homem, Athshe se torna uma colônia da Terra, escolhida por suas abundantes florestas para suprir as necessidades de nosso planeta por estes insumos.

Com a chegada de humanos da Terra ao planeta, os nativos de Athshe se veem submetidos à violência da guerra e da escravidão – e seu mundo, pautado na convivência respeitosa entre os seres e a natureza e no desconhecimento da violência como linguagem, se vê totalmente desestabilizado. Forçados a trabalhar para os invasores, os habitantes de Athshe têm seus nomes alterados para nomes em inglês, seus costumes reconhecidos como inferiores, menos civilizados e cognitivamente prejudicados e são vistos não como iguais, mas como não humanos – chamados de “creechies”, de forma pejorativa, um termo de se aproxima do som de “creature”, criatura, em inglês. Dentre os principais personagens encontram-se o capitão Davidson, o pesquisador Lyubov e Selver, um athsheano.
Davidson é o personagem que materializa a visão do colonizador. Parte do pressuposto de que os athsheanos são inferiores, menos civilizados, passíveis de serem escravizados em nome da missão que considera justa e necessária – garantir aos “verdadeiros” humanos as matérias primas necessárias à sua manutenção enquanto espécie e no jogo das relações de poder interplanetárias. Lyubov, por sua vez, tem como tarefa estudar e conhecer os habitantes do planeta, conhecer suas práticas, sua língua. Neste processo, permite-se construir laços de afeto e amizade com os athsheanos, especialmente com Selver – o que não apaga as tensões e hierarquizações que perpassam essa relação, no caso de Lyubov pelo olhar “científico” que vê em seu “objeto” algo entre um outro e um igual. Se tem algo que Ursula K. Le Guin faz com maestria é, pelo uso da ironia e com seu olhar afiado, deixar ver tensões, limites, fronteiras. Nada nunca é planificado, simples.
Selver torna-se figura central na trama quando, diante das violências e explorações perpetradas contra ele e seu povo, bem como contra sua terra, organiza uma reação contra os colonizadores. Através deste movimento e da relação de Selver com o povo da floresta, Ursula K. Le Guin nos convida a pensar sobre outros processos de colonização – não em planetas distantes, mas no nosso próprio planeta e tempo. Todos os elementos estão presentes: o racismo, a retirada forçada de seus territórios, a negação da língua e do nome. Athshe poderia ser a Argélia, o Brasil, a Palestina. Poderia ser qualquer nação e povo marcador pela violência colonial.
Os temas de Ursula K. Le Guin são o capitalismo, a exploração desenfreada da natureza em nome do lucro, a desigualdade racial, a violência de gênero. Essas são as discussões em Floresta é o nome do Mundo. A autora não está falando de planetas e seres inexistentes; ela fala de nós, do nosso mundo, daquilo que não estranhamos nem desconhecemos porque “o que é, é” – mas que, quando apresentados sob outras formas e nomes, parece estranhamente mais compreensível do que o que já nos é familiar e natural.
A narrativa se alterna entre o ponto de vista dos humanos da Terra e dos humanos de Athshe. Nesses últimos, mergulhamos em um universo que nos permite vislumbrar outras éticas para a vida humana. Nos primeiros, entretanto, a leitura nos é, por vezes, desconfortável – especialmente quando acompanhamos a narrativa pelo olhar de Davidson, que reúne de forma quase caricata o que há de mais desprezível do humano: prepotente, racista, violento, Davidson expõe, escancara a violência colonial.
Nosso desconforto diante de uma narrativa construída desde o olhar do opressor não deve, no entanto, nos fazer confundir esse personagem com o que a autora busca apresentar em sua obra; não é Davidson que representa o ponto defendido por Ursula K. Le Guin – pelo contrário, ele é exatamente o elemento que expõe a ferida da qual precisamos falar. Talvez este desconforto também fale da nossa dificuldade ou resistência em imaginar – mesmo diante de uma obra que nos proporciona exatamente isso: queremos tudo dado, mastigado, pronto para ser compreendido, a chave de leitura entregue em nossas mãos, cabendo a nós apenas girá-la na fechadura e encontrar aquilo que já pensávamos, nos reconfortando com uma visão que corresponde à nossa. Mas será que não seria papel da literatura exatamente nos desassossegar, nos tirar do conforto de saber e tomar as coisas como naturais, para nos movermos em direção a uma ação criativa, inventiva, de imaginar, refletir, produzir algo a partir do que nos é dado?
Comecei este texto dizendo, como Clarice, que a literatura não muda nada. Seguimos vivendo os efeitos da colonização, pois a lógica da colonialidade está impregnada no nosso modo de ser. Criticar esta lógica em um livro não a altera. Mas ao nos fazer olhar para ela, pensar sobre ela, vislumbrar seus absurdos a partir dos paralelos ficcionais construídos na literatura, o livro nos permite imaginar como seria se não fosse esse o nosso real. E é o esforço de imaginar que nos permite agir sobre o mundo – a ação, esta sim, capaz de alterar a ordem das coisas. O que Ursula K. Le Guin faz em Floresta é o Nome do Mundo (e em toda a sua obra) é nos mover para a ação; é, através do texto, nos tirar do texto. Lê-se Ursula K. Le Guin para parar de lê-la, para fechar o livro e ir pro mundo, pra criar outro mundo.
Em um discurso no American Masters, Ursula K. Le Guin defende que a arte deve prevalecer sobre o lucro. Em certo momento de sua fala, ela diz: “Nós vivemos no capitalismo; seu poder parece inescapável. Também parecia inescapável o poder divino dos reis. Qualquer poder humano pode ser resistido e transformado por seres humanos. Resistência e mudança frequentemente se iniciam na arte – e muito frequentemente na nossa arte, a arte das palavras”. Pela palavra escrita, pela literatura, é possível inventar formas de resistência, transformar aquilo que parece inescapável. Por vezes, estamos por demais assolados pela concretude do real para conseguir imaginar como fazê-lo; é aí que entra a arte: pra nos dar as ferramentas pra transformar tudo que é em outras coisas que podem ser.