Otto Lara Resende ou Bonitinha, mas Ordinária ou No Brasil Todo Mundo é Peixoto gira em torno de Edgar, um homem humilde que se vê diante de um dilema moral e financeiro. Ele é funcionário de um rico empresário, o Sr. Werneck, cujo genro, Peixoto, lhe faz uma proposta tentadora: casar-se com a filha de Werneck, Maria Cecília.
Edgar se encontra dividido entre a oportunidade de ascender socialmente e garantir uma vida melhor através do casamento com Maria Cecília, e o seu amor por Ritinha, uma jovem pobre e trabalhadora, sua vizinha. A trama se desenrola mostrando as hesitações de Edgar, suas conversas com Ritinha e as pressões da família de Maria Cecília, expondo as complexidades das relações sociais, do dinheiro e do amor.

A peça é uma tragédia cômica que explora temas como moralidade, hipocrisia social, sexualidade e violência psicológica. Desnudando a falsa moralidade da elite, mostrando como a respeitabilidade social esconde perversão e crueldade. O cerne da peça reside no dilema ético enfrentado por Edgar. A proposta de casamento arranjado em troca de dinheiro escancara como as necessidades financeiras podem corromper valores morais e influenciar decisões cruciais. A peça também apresenta como as personagens femininas, Maria Cecília e Ritinha, são retratadas em situações de vulnerabilidade e subjugação, gerando reflexões sobre o papel da mulher na sociedade e as pressões que sofrem.
A escolha de linguagem teatral do grupo para montagem de Otto Lara Resende ou Bonitinha, mas Ordinária ou No Brasil Todo Mundo é Peixoto, mexeu muito comigo num primeiro momento, talvez não permitindo que eu aproveitasse a adaptação e a proposta do grupo. Mas entender que a escolha de linguagem foi seguir por uma perspectiva expressionista, potencializando a força dramática da peça, amplificando sua crítica social.
O teatro expressionista, influenciado pelo movimento artístico alemão do início do séc. XX, se opõe à reprodução da realidade, renunciando à imitação do mundo e potencializando, através da expansão do insconsciente, o âmago das coisas. Suas principais características são os enredos metafóricos e o extremo exagero. Consiste em uma reação violenta contra o realismo e o naturalismo, contra as aparências da realidade material, buscando desnaturalizar a cena, de toda imitação realista para exprimir aí a essência do drama.
O expressionismo casa perfeitamente com a dramaturgia de Nelson Rodrigues porque distorce a realidade para expor suas verdades mais profundas, ao aplicar essa lente à peça, é possível intensificar a crítica rodrigueana.

Uma vez entendendo a proposta expressionista de Baskerville junto a Brunna Martins para a obra de Nelson Rodrigues, é possível afirmar que o elenco demonstra coragem e maturidade ao enfrentar a densidade psicológica e a crueza social presentes na obra de Nelson Rodrigues.
Os atores apresentam domínio da peça, utilizando-se de gestualidade amplificada e distorção emocional para traduzir o subtexto psicológico da obra. A opção por movimentos abruptos e expressões faciais hiperbólicas não cai no exagero vazio, mas serve como ferramenta crítica para expor a hipocrisia e o desespero das personagens, alinhando-se perfeitamente ao universo de Nelson Rodrigues.
Tecnicamente temos escolhas extremamente curiosas. Uma das coisas que me instigou logo de cara foi o cenário assinado por Baskerville, com terra preta por todo palco e bastante pneus espalhados, mas ao pensar nos signos é possível validar a genialidade das escolhas. A terra preta pode ser utilizada como um símbolo de putrefação moral, quando associada a terra ao cemitério. Já os pneus utilizados brilhantemente para reformulação do cenário, também podem ser metáforas da descartabilidade humana.
A banda também é um destaque em toda a peça. Tocada com teclados e sanfonas, temos um tango muito bem encaixado no começo da peça, carregando a dramaticidade de Bonitinha mas Ordinária.

Em suma, a opção pelo expressionismo nesta montagem não só dialoga com a essência da dramaturgia de Nelson Rodrigues, como a intensifica, transformando o palco em um espelho distorcido — mas revelador — da hipocrisia e da violência social. Uma encenação que, ao exagerar formas e sentimentos, desvela a podridão moral por trás das fachadas respeitáveis, deixando ao espectador não apenas a perturbação, mas a reflexão necessária. Arte, afinal, deve incomodar — e aqui, incomoda com maestria.
Ficha Técnica:
Texto: Nelson Rodrigues
Direção e encenação: Nelson Baskerville
Assistência de Direção: Brunna Martins
Elenco: Alana Fagundes, Alessandra Rabelo,
Camila Brandão, Davi Parizotti, Deborah
Kövesi, Donato Caranassios, Filipe Barral, Gui
de Rose, Isa Scoralick, João Rodriguez, Júlia Castanheiro, Lauro
Fagundes, Leonardo Van der Neut, Luciana
Marcon, Lia Bennatti, Marcio Araujo, Maria
Estela Modena, Nelson Fioque, Naiara de
Castro e Sabrina Larisse
Elenco de Apoio: Afonso Bispo Jr e Matheus Bonieri
Desenho da coreografia: Fernando Fecchio
Cenografia: Nelson Baskerville
Contrarregragem: Alana Fagundes e João Rodriguez
Figurino: Davi Parizotti
Assistentes de figurino: Patrícia de Simone e
Alex Andrade
Costureira: Claudia Moreno
Iluminação: Alê Passos
Sonoplastia/música ao vivo: Filipe Barral e Luiza Mariah
Operador de som: Alê Passos
Mídias Sociais: Deborah Kövesi, Júlia Castanheiro e Leonardo Van der Neut
Fotos: Jennifer Glass
Produção: Ocanga Produções e Inbox Cultural