Quem é Bernardo Soares? O que é O livro do desassossego? Dois questionamentos exorbitantes para aqueles que se debruçam sobre a literatura, especialmente, a portuguesa. Permitam-me argumentar melhor. O “criador” de Bernardo Soares, Fernando Pessoa, é o senhor das personas, isto é, o poeta português, desde a infância têm o hábito de criar personagens. Com o passar do tempo, aperfeiçoou a sua “metodologia imaginativa” e entrega-se ao exílio social voluntário: “não tinha eu mais que cinco anos, e, criança isolada e não desejando senão assim estar, já me acompanhavam algumas figuras do meu sonho.” Dessa forma, anos mais tarde, com sua imaginação aperfeiçoada, surgem os heterônimos — Alberto Caeiro, Ricardo Reis, Álvaro de Campos — cujos poemas e personalidades não pretendo adentrar. Na sombra da trindade heteronímica pessoana, está Bernardo Soares. Ele não é, de fato, um heterónimo, Pessoa explica:
“É um semi-heterônimo porque, não sendo a personalidade a minha, é, não diferente da minha, uma simples mutilação dela.”

Este semi-heterônimo escreveu inúmeros fragmentos os quais apenas foram publicados cinquenta anos após a morte de Pessoa, em 1982. Richard Zenith, estudioso pessoano e organizador da obra, observa que “mesmo que Pessoa tivesse revisto e organizado o livro e por mais que tivesse domado e domesticado, seria sempre uma obra constituída por fragmentos.” Os excertos, que no conjunto formam o Livro do Desassossego, revelam um desafio para o estudioso de literaturas: como defini-lo? Seria um diário íntimo de Soares? Um breve ensaio? Prosa poética? É um antilivro?
O autor das passagens, Bernardo Soares, leva uma existência monótona, dedica seu tempo livre à escrita após trabalhar como ajudante de guarda-livro na capital portuguesa. É descrito com, mais ou menos, 30 anos, magro e pálido. Em sua face, parece indicar tristeza e indiferença. Como é indicado no início do livro, numa espécie de prefácio, a figura de Soares, paulatinamente, chamou a atenção de Pessoa. Ambos frequentavam o mesmo restaurante assiduamente. Aproximam-se devido a um acidente na rua. Conversaram como colegas que frequentam o mesmo estabelecimento todos os dias. Até que Soares entrega para Pessoa o seu material literário. Acerca dos escritos de Soares, recorro, mais uma vez as observações feitas por Richard Zenith:
“O livro do desassossego é uma sequência de fotografias estranhamente íntimas tiradas por um fotógrafo que as revela com palavras”

Nas sequências fotográficas de palavras, Bernardo Soares expõe o “desalinho triste” e suas “emoções confusas”. Essa figura anônima lisboeta entrega-se aos devaneios, imagens poéticas, sempre dominado pelo desejo de dormir para sonhar e fugir da realidade concreta. A sua existência é entediante e não há propósito. Sempre desassossegado e perante a vastidão de possibilidades, sente-se sufocado e opta pela inação. Embora sua interioridade esteja inquieta, sua vida exterior é repetitiva, pautada pelo trabalho rotineiro em um escritório, sempre às ordens do patrão Vásquez. Soares, então, conduz a vida evitando dar sentido à realidade, pois tudo, afinal, é um nada:
A vida é oca, a alma é oca, o mundo é oco. Todos os deuses morrem de uma morte maior que a morte. Tudo está mais vazio que o vácuo. É tudo um caos de coisas nenhumas.
Ora, se tudo é um nada, por que Bernardo insiste em sentar em sua escrivaninha com seus parágrafos de devaneios? Arrisco-me a dizer que ele não se permite parar de escrever. A escrita é um vício para o qual não há cura — a recuperação é impossível. Essa droga habitual talvez seja o que sustenta a insignificância. Escrever, assim, torna-se uma prática estética, distrai-o de si mesmo quando nada faz sentido. O que resta é sentar em seus aposentos, com seus papéis e sua caligrafia. Além disso, refugiar-se na ficção também é uma alternativa para Soares. No fragmento 195, Bernardo cita um personagem de Charles Dickens:
Há criaturas que sofrem realmente por não poder ter vivido na vida real como sr. Pickwick e ter apertado a mão ao sr. Wardle. Sou um desses. Tenho chorado lágrimas verdadeiras sobre esse romance, por não ter vivido naquele tempo, com aquela gente, gente real.
Soares chora pelos personagens de papel, lamentando justamente o que é impossível. Se, no entanto, fosse possível derramar lágrimas pelas personagens de Dickens, a ficção se tornariaindiferente. Afinal, que importa, verdadeiramente, é a imaginação, por isso, é necessário se distanciar, o máximo possível, da opacidade da realidade. Logo, como as páginas do autor inglês estão no plano imaginativo, elas podem oferecer sentido e pertencimento, já que há uma náusea sufocante -desassossegante- civilizatória na qual Bernardo está inserido.
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Como é possível um (não) livro tão devastador e, de certa forma, deprimente e pessimista, ser tão convidativo? A crítica literária Leyla Perrone-Moisés sugere que seja “[…] por sua defesa teórica e pela demonstração prática da salvação pela arte.” Assim como Bernardo Soares, somos desassossegados e sofremos a náusea estomacal da vida. Se Pessoa presenciou agudamente, desde a decadência geopolítica portuguesa até as grandes guerras do século XX, nós presenciamos outras guerras e outras circunstâncias, no mínimo, apavorantes na política. O que nos resta? A arte, os belos versos e prosas de Pessoa.
As duas perguntas as quais iniciei meu texto são difíceis de se responder e, provavelmente, não há uma resposta pronta e enquadrada. Sigamos o exemplo de Soares: a partir dos questionamentos, divaguemos. No entanto, tenha certeza de que este livro é para ser lido durante toda a vida. Este é o livro para se embriagar. Não tenha pressa, leia em doses homeopáticas, deixe os fragmentos sorarianos na mesa da sua cabeceira.
O Livro do Desassossego foi o livro do mês de março do Clube Sonâmbulos, promovido pelo Jornal Nota
Bibliografia consultada:
PAZ, Octávio. Fernando Pessoa o desconhecido de si mesmo. Paz e Terra , Rio de Janeiro 1982.
PESSOA, F., Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação. Textos estabelecidos e prefaciados por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho. Lisboa: Editorial Ática, 1966.
ZENITH, Richard. Livro Do Desassossego: O romance Possível. In: ZENITH, Richard. Livro Do Desassossego: o romance possível. [S. l.], 3 dez. 2013. Disponível em: https://www.blogletras.com/. Acesso em: 07 maio. 2025
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