Numa madrugada regada a álcool, Paulo (Gustavo Machado) grava uma fita cassete para Marina (Roberta Ribas), sua amante e vizinha. Ele, obviamente, faz mais que isso nos 85 minutos de projeção: datilografa, reclama do Acordo Ortográfico, beija de língua uma luminária. Parte para outro equipamento de gravação: é agora com uma filmadora que registra o que quer dizer para a mesma interlocutora. É um monólogo confessional, do tipo que faz sucesso no teatro, mas ao mesmo tempo é puro cinema. Para saber mais sobre as escolhas neste exercício de fazer cinematográfico, conversamos com os diretores de A Voz que Resta (2025).
Logo no começo do filme, há uma ação que é impossível no teatro: a câmera passeia por capas de livros, e assim ficamos conhecendo melhor nosso personagem. Além disso, há mais de uma situação em que Paulo diz “nevermore”, o que me fez lembrar Edgar Allan Poe. Quais outras influências literárias foram usadas para criar o monólogo e depois o filme?
Gustavo: Sobre a peça, porque é texto de direção do Vadim, essa pergunta realmente o Vadim conseguiria responder com muito mais precisão. Mas referências literárias do filme, tem o Angústia, de Graciliano Ramos, que tem uma história de um personagem com um amor platônico, com uma figura intangível, que ele não consegue ter, e aquela paixão vai dilacerando ele. É muito forte esse personagem.
Gustavo: A Voz Humana, do Jean Cocteau, é o mesmo lugar de angústia amorosa, o objeto amoroso é inalcançável, é incompreensível, e a pessoa está em desespero, em colapso por causa disso. O Vadim é um baita intelectual, e faz muito tempo que a gente montou essa peça. Mas eu diria essas duas referências, o Jean Cocteau e o Graciliano. São duas referências literárias bem fortes para o texto, para a peça.
Gustavo: E tem o Edgar Allan Poe também, que ela citou, que são os corvos, que eles ficam nevermore, nevermore, e isso está dito, esse nevermore é o corvo mesmo do Edgar Allan Poe naquela situação lá que o cara está num… É, mas é uma coisa pontual, é uma fala, não acho que estruturalmente tem muito esse clima do Edgar Allan Poe, não tem a linguagem, tem uma citação que até na época da peça eu falava disso, será que não vale a pena falar do Edgar Allan Poe? É tão legal saber que os corvos falam nevermore, nevermore. E ele (Vadim, roteirista da peça) falou: “não, não, quem sabe, sabe, e quem não sabe, aprende. Pesquise, dê um Google” (risos).
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Outros elementos impossíveis no teatro, mas muito empregados no filme, são os close-ups e close-ups extremos. É uma tentativa de inserir o público no mundo, no cérebro, do protagonista?
Roberta: Sim, a gente quis. É um texto extremamente íntimo, discerne do personagem, então eu jamais poderia fazer uma decupagem longe, né? O público precisa estar aqui com ele, precisa estar sentindo esse homem vibrar, ele expor esses sentimentos, então tem que estar muito perto, né? É detalhe, é minúcia, é sentimento íntimo. A gente tem alguns planos mais abertos, mais para dar respiro, mas é para estar perto nessa situação. Ele está preso nesse apartamento, tentando passar tudo isso, ele está gravando para a Marina, a gente também quer que o público se sinta a Marina, e se eles forem um casal, o casal está perto, você beija, você está na pele, então é muito importante ter essa proximidade da câmera para trazer isso, ver a veia da pessoa.
Gustavo: Na verdade é a própria função do close, aproximar, e aproximar, portanto, é entender o outro, ter mais chances de entender, não só a pessoa. Por exemplo, você vê ali uma pessoa jogando pesticida no formigueiro, o plano aberto, mas se você dá um close no grupo de formiguinhas carregando uma plantinha, você vê, puxa vida, elas estavam trabalhando, a terra era delas, a gente que está invadindo… muda totalmente a sua relação com a cena, é aproximar para você entender mais.
Desde o pôster é possível perceber a predominância da cor vermelha. O vermelho tem muitos significados, sendo o mais constante e óbvio a paixão. Ao usar muito o vermelho em “Gritos e Sussurros” (1972), o cineasta Ingmar Bergman justificou a escolha dizendo que imaginava que o interior da alma é vermelho. E qual a razão de vocês?
Roberta: Eu concordo com o Bergman nisso, o interior da alma é vermelho. E do corpo também, no caso. Literalmente. Então, bom, já é uma estética e uma linguagem que eu desenvolvo desde os meus curtas, que falam de histórias de casal. Então, trazer o vermelho, principalmente, e o azul como corpo complementar. Mas, exatamente, o vermelho é para trazer essa paixão, essa pulsação, é coração, é sangue, é carne, é essa emoção, à flor da pele que a gente cria nesse personagem, é sangue, é veia pulsando. Então, o vermelho te traz a esse lugar, te leva para esse lugar. Além de deixar tudo mais onírico, escuro, a noite escura da alma. Então, você está ali nessa intimidade, nessa minúcia pessoal do personagem.
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A cena de sexo entre Paulo e Marina não compartilha da luz azul presente na cena de beijos do casal, e mais parece uma luta com a curiosa trilha sonora de música sacra. Ela conclui com Paulo falando: “você é minha”. São indícios de que se tratava de uma obsessão, uma paixão feroz ou um relacionamento abusivo, que aqui vemos unilateralmente?
Roberta: Não, eu acho que quando você se apaixona loucamente, é feroz. Por isso o vermelho, é paixão, é carne. É uma luta, porque eles estão brigando na relação. Só que na relação, Marina manda mais, porque é Marina que entra e sai quando ela quer. Ele mesmo fala que ele é um bicho amestrado, que ele é o cachorrinho, e de certa forma, quando ele fala que ele quer ela de verdade, quer ter um filho dela, ele está se pondo inteiro ali. É a maior abertura que você pode dar para alguém que você ama. Então ele, de certa forma, está virando esse jogo na relação. Ele está assim, all in, como se diz em poker. Ele põe todas as cartas nisso. E ela quer, mas ela não quer, tanto que ela puxa ele também de volta, eles se querem muito. Para você chegar nesse lugar, é feroz. Então é essa dinâmica física grande, essa é minha visão. Então assim, aí eu como mulher vou dizer, eu queria um homem que me amasse o quanto o Paulo ama a Marina. Então em nenhum momento não é abuso nem nada. São sutilezas de relacionamento.
Gustavo: É, e me fez lembrar outra referência cinematográfica, que são os filmes de dança. Então, essa cena da transa deles, e eu e Roberta a gente encarou assim, era uma dança da cena de transa. Não era a cena de transa tanto que a gente nem tira roupa, não tem o que se espera de uma cena de transa. É uma coreografia mesmo, e essa coreografia é como as coreografias da Pina Bausch e DV8, enfim, de várias companhias de dança mais adultas e sérias assim.
Roberta: Num certo nível todo sexo é uma luta de posse, uma luta que tem agressividade, tem selvageria.
De que maneira, além do óbvio discurso sobre engravidar perto do final, o filme subverte papéis de gênero?
Roberta: Eu acho que ele é super masculino, ela é super feminina. O que eu acho que é incomum é ver um homem chorando de amor, porque, normalmente, em tudo que é retratado nas artes, a maioria é a mulher sempre chorando de amor, e não tem o homem.
Gustavo: De um modo geral, como a Rô falou, sobretudo no audiovisual, a gente vê o homem, quando está sofrendo de amor, ele tende a ser retratado no lado agressivo, no lado violento. O homem fica violento. Vai lá e mata a mulher. Bate. Vai para uma coisa física. Que até o Paulo indica isso na fala. Mas me parece evidente que é um grito solitário. Nada indica que ele realmente vai fazer, que ele quer que ela seja minha. Quando ele fala que ela é minha, não quer dizer que ela é minha, que ele vai botar uma coleira nela. Ela é minha porque eu sou dela. É muito mais querer dizer isso.
Gustavo: Uma subversão é que a mulher geralmente é retratada como a Amélia, a sofredora, e o homem é o violento, que não sofre, não sente tanto. O bofe, o amante, como diz o jogo, o belo indiferente, que é belo e não sente porra nenhuma. E, nesse caso, não.
Gustavo: A coisa do filho, no final, eu não acho que seja também uma subversão de gênero, porque é tão humano que ele quer ter uma coisa dela. Mesmo ele não poder ainda engravidar, ele quer engravidar dela, porque ele quer uma coisa dela.
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Pelo título, foi impossível não remeter ao média-metragem A Voz Humana, de Pedro Almodóvar. Como ambas as obras lidam com a ausência do interlocutor, sendo basicamente monólogos, vocês podem dizer que o filme de Almodóvar foi uma referência ou feliz coincidência?
Gustavo: Eu não vi esse filme, apesar de ser fã de Almodóvar. Mas, tem uma peça, que já tem muitos anos, que é do Jean Cocteau, chamada A Voz Humana. E essa sim, essa é uma referência fortíssima, o texto da peça de teatro. Mas o filme eu não vi. Agora, eu vi milhões de filmes de Almodóvar, e com certeza Almodóvar é uma influência absoluta na minha vida, na minha sensibilidade, no caso, de homem, e na minha atuação. Os atores, aquelas atrizes fenomenais, as cenas. É um sonho. Qualquer ator fica arrepiado de falar. Qualquer ator que eu conheço, qualquer atriz, vai querer fazer um filme de Almodóvar, pagaria para fazer um filme de Almodóvar, para viver aqueles personagens, para viver aquelas cenas que têm humor e que têm drama, e que a máscara da comédia e da tragédia estão juntas, é indissociável, você vê, você chora e ri ao mesmo tempo. É genial. Então, uma baita influência em tudo.
Roberta: Eu vi o filme, é maravilhoso, mas é bem diferente, lógico. É uma adaptação do Almodóvar da peça do Jean Cocteau, como o Gustavo disse, mas a referência do nosso filme é a peça do Jean Cocteau. A peça é quase uma contracenação mesmo com o texto do Jean Cocteau. Eu e o Vadim, criando ali, o Vadim escrevia, mas escrevia sempre, não é um texto pronto que ele escrevia.
Gustavo: O Vadim escreve muito para o ator. Eu posso falar porque é o terceiro solo que eu fiz dele. Então, ele vinha com uma ou duas páginas de texto, eles mexiam na sala de ensaio e mudavam, voltavam para o seguinte, mudavam sempre, e iam propondo cargos também, que viravam texto, e aquela coisa ia se acertando. Então, tem uma contracenação, a gente falava muito em A Voz Humana.
Gustavo: Mas é isso: ambos os filmes só têm um lado da moeda, só tem uma versão dos fatos. E isso é um ponto superdelicado, super difícil, talvez o grande desafio, tanto da peça quanto do filme, seja esse. Para fazer uma peça de alguém falando de uma relação, e a gente não tem a voz do outro.
Gustavo: Então, isso implica a gente tentar ser o mais pessoal possível, ser o mais humano, mais sincero, mais franco, e contar com uma inteligência do público de que está vendo um lado da moeda, e que não é uma coisa jurídica, não é uma peça de advogados, então tem que ter os dois lados bem representados, faça com aquilo o que quiser. Quando o Picasso pinta o Guernica, ninguém está preocupado. E o quadro do General Franco? E o quadro que os fascistas pintaram? Qual é o lado dele? Não tem.
“A Voz que Resta” estreia em 06 de fevereiro. Confira o trailer:
Revisado por Mariana Perizzolo
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