O historiador britânico Eric Hobsbawm (1917-2012) chamou o século XIX de “o longo século” tamanhas foram as transformações que se iniciaram com a Revolução Francesa, em 1789, e encerraram seu ciclo com a 1ª Guerra Mundial, em 1914. Mudanças que tiveram seu impulso, assim como seu epicentro, na Europa, mas que se espalharam pelo mundo através do imperialismo e da ideia ocidental de um “progresso civilizatório”.
Hobsbawm fala do “ferro derramando-se em milhões de toneladas pelo mundo” em um drama econômico e tecnológico. Aqui entra o professor de japonês e pesquisador Seth Jacobowitz buscando analisar de que forma esse período de transformações e experimentações tecnológicas impactou e alterou para sempre a literatura e a cultura visual do Japão.
Nessa linha, Jacobowitz declara:
“O Japão da era Meiji testemunhou uma série de movimentos de padronização nacionais, imperiais e internacionais — temporais, espaciais e linguísticos — em conjunto com novas tecnologias midiáticas que redesenharam cada vez mais as fronteiras da vida cotidiana em todo o mundo.”
Acho importante chamar a atenção nesse momento para o fato de que nós, pós-modernos, temos a tendência de achar que o que nos ronda sempre existiu, coisas que recebemos prontas como naturais, mas isso não é real. A padronização de medidas, por exemplo, ou os fusos horários, dão a impressão de que sempre fizeram parte do cotidiano, mas foram criados exatamente no século XIX diante de um mundo crescentemente conectado e a serviço de projetos coloniais.
Jacobowitz tem isso em mente enquanto lança mão de todo arcabouço teórico e arquivístico reunido nessa obra que é dividida em quatro partes.
A Parte 1 — Redes discursivas no Japão da era Meiji é composta por três capítulos. Em “Padronizando medidas”, título do Capítulo 1, ele contextualiza como o Japão lida com essa padronização estabelecida pelo Ocidente e a sua própria expansão colonial para o Leste Asiático e Pacífico.
Há um embate entre o tempo natural e a hora legal, imposta de cima para baixo. Não é mais o movimento do sol que determina a experiência das populações com o tempo, mas sim uma medida de tempo artificial, fruto de uma escolha política em favor dos trilhos ferroviários e de um sistema postal unificado que conta com o telégrafo como suporte.
São esses fios que, segundo o autor, formam a costura para a criação do Estado-nação moderno, pois é isso que os Estados-nações são, um invento. Não há espaço para arbitrariedade aqui. Lembremos “somos filhos da época e a época é política.”, nas palavras da escritora polonesa Wislawa Szymborska. Tudo é político.
Tendo isso em vista, avançamos para o Capítulo 2, Telégrafo e correio. Nele, Jacobowitz faz um estudo de como a expansão do telégrafo e de um novo sistema de correio que aposentou o tradicional “pés ligeiros” (hikyaku) impulsionou os debates pela reforma da língua e da escrita nacionais no Japão.
Intensificava-se a busca por um padrão hegemônico, trocando a heterogeneidade original pela padronização, inclusive com a proposta da abolição dos caracteres chineses e a criação de uma escrita semelhante ao alfabeto. Ou seja, tal reforma passa por uma questão de unificação, mas também pela busca de um afastamento de uma China decadente e uma aproximação com o Ocidente.
Um adendo, o sistema de escrita japonês veio do chinês. A escrita chinesa foi introduzida entre os séculos V e VI, e posteriormente ela foi acrescentada de dois alfabetos fonéticos (hiragana e katakana), que eram variações modificadas dos caracteres chineses. Na fala, um grande número de dialetos locais ainda é utilizado hoje em dia, enquanto o japonês falado pelos habitantes de Tóquio foi definido como o japonês padrão exatamente nesse período que Jacobowitz aborda.
Tomando novamente emprestado as palavras do historiador Hobsbawm, “a vitória inglesa sobre a China na primeira Guerra do Ópio (1839-42) demonstrou a capacidade e a possibilidade dos métodos do Ocidente. Se a própria China não podia resistir-lhes, não estariam os ocidentais predestinados a vencer em todas as partes?” Sendo assim, “A força motriz era a ocidentalização. O Oeste possuía claramente o segredo do sucesso e, portanto, a todo custo precisava ser imitado.”. Retornaremos a esse tópico quando Jacobowitz abordar a questão do alfabeto como tecnologia.
Enquanto isso, voltemos ao contexto no qual o Japão aproxima-se do Ocidente e dessa aproximação traz a tecnologia do telégrafo. Invenção que possibilitou que transmissões instantâneas deixassem de ser parte exclusiva da presença física, mas que também serviu como um importante instrumento colonial.
“Ao mesmo tempo que os fios estavam espalhados por todo o interior doméstico, eles também se estendiam para cobrir o território separado e desigual das colônias japonesas no Leste Asiático.”
Ao telégrafo somou-se o serviço postal. As caixas de madeira espalhadas ao longo das estradas transformaram-se em postos avançados de um sistema padrão e interconectado a serviço do poder do Estado Imperial japonês.
Todas essas mudanças alteraram o cenário e as convenções sociais, o que se reflete na arte que era produzida. No Capítulo 3, Fiação no Japão da era Meiji, o autor analisa algumas obras como desenhos, xilogravuras e uma peça de kaburi, uma das quatro formas tradicionais de teatro japonês, e como é possível ver dois mundos em choque, assim como a ruptura com as tradições do período anterior que valorizava a projeção de gravuras por conta própria, por exemplo, enquanto naquele momento o importante era reproduzir o que os olhos viam e eles viam fios e o Estado por todo lugar.
Na Parte 2 — A inscrição da linguagem nacional, também composta por três capítulos, a língua é o campo de disputa.
Vimos mais acima que a escrita e a fala no Japão do século XIX eram bastante díspares, com a escrita baseada em caracteres chineses e diversos dialetos dominando a fala do povo que era encaminhado para formar uma “nação” aos moldes modernos. Nesse sentido, o Capítulo 4, Japonês em bom inglês, dá um panorama dos debates que pipocavam entre as décadas de 1870 e 1900 e tinham como objetivo “estabelecer uma correspondência direta entre o japonês falado e o escrito.”
Uma batalha de ideais, de pontos de vista, instituiu-se. Defensores de que “uma língua e uma escrita nacionais baseadas no inglês simplificado ofereciam o meio mais conveniente de incutir a identidade nacional japonesa e competir de igual para igual com os poderes ocidentais.” Outros, baseando-se na materialidade da escrita, apostavam na adoção das letras romanas como caminho para se alcançar a “civilização iluminada”.
Jacobowitz, entretanto, salienta que essa visão eurocentrista de alguns linguistas japoneses vinha menos de uma imitação acrítica do Ocidente e mais uma visão do alfabeto como uma tecnologia prática a serviço do Estado. Há, sim, uma dose de orientalismo ao verem os caracteres chineses como “hieróglifos” antiquados para o novo mundo moderno e padronizado que emergia, mas no fundo o autor defende que o processo ocorrido no Japão está, na verdade, inserido em mudanças políticas e linguísticas que se alastravam pelo mundo diante de uma visão tecnicista e, acrescento, positivista, que tendia a ver tudo através de pontos de vista estritamente científicos, sendo esse o único ponto válido.
Nos capítulos 5 e 6, Taquigrafia fonética e Processando a Fala Visível, respectivamente, o autor concentra-se em analisar o impacto dessas duas tecnologias no processo de unificação da língua japonesa.
Enquanto a taquigrafia é um sistema de escrita abreviada, fonética e sintética que possibilita a pessoa a escrever tão depressa como se fala, a Fala Visível também é um sistema de escrita, criado por Melville Bell, pai do famoso inventor do telefone, Alexander Graham Bell, e que enxergando o corpo como uma máquina viva formada por conjuntos de peças interligadas, bem a cara do século XIX, desenvolveu um conjunto de símbolos baseados nos movimentos que fazemos com a boca ao pronunciar vogais e consoantes. Ambas as tecnologias de escrita fizeram parte dos esforços na buscar por uma forma de aproximar a escrita da fala em uma forma padronizada. Como Jacobowitz destaca: “escrever como se fala” e “falar como se escreve”.
Lembremos que estamos analisando uma época na qual a fotografia já havia sido inventada, mas ainda não havia métodos de se gravar o som, a fala, inclusive, a taquigrafia aparecia como a “fotografia falada”.
Também é importante chamar a atenção para o fato de que o século XIX foi o berço do darwinismo social e toda sua eugenia e racismo que hierarquiza as sociedades. Nesse contexto, um dos linguistas japoneses mais entusiastas da Fala Visível, Shuji Isawa, acreditava que esse sistema “estava idealmente destinada a regular e avançar o novo conceito de uma língua nacional japonesa unificada (kakugo) no centro de um sistema imperial no Leste Asiático. Não era a intenção de Isawa criar um híbrido ou uma síntese de línguas ou sistemas de escrita coloniais; em vez disso, era para manter modos padronizados de fala que poderiam ser ensinados tanto ao colonizador quando ao colonizado.”
Mesmo que a Fala Visível não tenha sido colocada em prática dessa forma, todos os movimentos reformistas ajudaram a traçar o caminho do japonês unificado, além de tudo isso reforçar o que Jacobowitz está sempre retomando ao longo da sua tese, a língua como território de disputa política e instrumento em um projeto imperial japonês.
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Na Parte 3 — Escrevendo as coisas tal como são vemos esse caminho do estilo unificado ficar ainda mais viável através do realismo transcricional via taquigrafia, assim como também ficam claros os impactos de todo esse movimento nas artes, principalmente, na literatura, na pintura e na caligrafia.
No Capítulo 7, como o próprio título, Mudança de Regime, já indica, acompanhamos alterações significativas no que Jacobowitz chama de “constelações”, ou seja, nos conjuntos de elementos que formam um todo coeso e com uma conexão em comum. Aqui, no caso, estamos falando de remodelações na cultura xilográfica, nos teatros populares e nos textos literários.
Com a exatidão mecânica do período, com a fotografia e a taquigrafia como novas tecnologias que em teoria reproduziam a verdade do mundo e essa verdade sendo a real beleza, hierarquizavam-se as artes; a poesia, a pintura e a literatura separavam-se; menosprezava-se a licença poética; o pincel deixava de ser o “principal instrumento artístico de mão”.
Na literatura, especificadamente, Jacobowitz destaca o romance político Ilustres estadistas de Tebas, de Ryukei Yano, a primeira obra literária a ser transcrita em taquigrafia. Após machucar o braço, o autor teve a ajuda de dois repórteres taquigráficos aos quais ele narrou as origens do Ocidente na Grécia antiga, ao que Jacobowitz lê como uma “alegoria do Japão superando os tratados desiguais impostos pelo Ocidente”
Falando em literatura, assim inicia-se o Capitulo 8, As origens assombradas da literatura japonesa moderna:
“A literatura japonesa moderna começa com uma história de fantasma.”
O que além de ser uma passagem belíssima, talvez faça muito sentido para os fãs de Junji Ito. Nesse capítulo, Jacobowitz debruça-se principalmente sobre as transcrições em taquigrafia publicadas como uma série de libretos das performances de rakugo de A história de fantasma da lanterna de peônia, de Encho Sanyutei.
Rakugo é uma contação de histórias engraçadas ou sentimentais por um narrador solo que interpreta vários personagens. Adaptada a partir de um conto de terror chinês, A lanterna de peônia era uma dessas performances. Ela “foi narrada no dialeto Fukagawa de Edo-Tóquio, que estava intimamente associado ao gesaku, ao teatro plebeu e às vozes animadas do distrito dos prazeres.”
Ou seja, no rakugo a fala é essencial, a entonação, o vocabulário. À época, reproduzir isso na transcrição deu à taquigrafia a capacidade de “transformar a fala em uma escrita transparente”, estabelecendo o conceito de realismo transcricional: aquele “que permite que os leitores vejam, ouçam e, acima de tudo, sintam o que realmente não existe.” Jacobowitz chega a falar de uma mimese alucinógena, inclusive.
E é aí que reside a intenção dele, defender que a transcrição taquigráfica deixou marcas na literatura japonesa moderna, reforçando: a transparência fonética e o realismo mimético.
As possibilidades literárias abertas por esse realismo nós vemos na Parte 4 — Os limites do realismo. De acordo com Jacobowitz, após os movimentos que vimos na Parte 3 os escritores passaram a assumir para a si a missão de “escrever as coisas tal como são” e isso se deve, em parte, as experimentações de Shiki Masoaka, analisadas no Capítulo 9, Rabiscos de Shiki Masaoka.
Shiki é o responsável pelo desenvolvimento do haiku moderno (um poema curto que segue o formato de três linhas e dezessete sílabas), rompendo com as regras tradicionais da poesia e abrindo sua escrita para a modernidade visual e linguística, já que só assim ele seria capaz de apresentar as coisas como elas realmente são.
No décimo e último capítulo, Arranhando discos com o gato de Soseki, Jacobowitz apresenta o gato de Eu sou um gato, de Natsume Soseki, como narrador, escriba e autor da glorificação do estilo unificado no romance moderno nipônico, ao mesmo tempo, em que critica ferozmente a padronização e a homogeneidade em um texto que funciona “como um disco intermitentemente riscado e girado por seu narrador, o gato.”.
Depois dessa intensa viagem ao Japão do século XIX, quero finalizar destacando que por mais complexa que seja a pesquisa de Jacobowitz, que faz um verdadeiro trabalho de “arqueólogo” escavando arquivos e textos, além de profundas discussões bibliográficas, “A escrita no Japão da era Meiji” não é um livro difícil apesar de teórico. Ele apenas tem seu próprio tempo e se você quiser realmente aproveitá-lo em toda sua potência, é uma aquisição de grande valia para quem se interessa não só pela História das mídias e da língua e da literatura japonesas, mas pela linguagem no geral. E além de toda essa bagagem histórica e teórica que ele deixa e a certeza da tecnologia como poder, há também o lembrete de que a língua é sempre um território em disputa.
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Sobre o autor:
Seth Jacobowitz é atualmente professor de japonês na Universidade Estadual do Texas, especialista em literatura japonesa moderna, com pós-doutorado no Instituto Reischauer de Estudos Japoneses da Harvard University. Já lecionou também em Yale e na Universidade Estadual de San Francisco, além de ser pesquisador visitante regular do Centro de Estudos Japoneses da Universidade de São Paulo. Organizou e traduziu do japonês para o inglês Edogawa Rampo Reader (Kurodahan Press, 2008), coletânea de contos e não ficção do autor que dá título ao livro; e traduziu do português para o inglês Corações Sujos: A História da Shindo Renmei, de Fernando Morais (Palgrave MacMillan, 2021). Este A escrita no Japão da era Meiji ganhou o prêmio literário da International Convention of Asia Scholars na categoria Humanidades.
Fontes:
“A era das revoluções: 1789-1848”, de Eric J. Hobsbawm. Tradução Maria L. Teixeira e Marcos Penchel. Paz & Terra, 2012.
“A era do capital: 1848 – 1875”, de Eric J. Hobsbawm. Tradução Luciano Costa. Paz & Terra, 2012.
https://www.br.emb-japan.go.jp/cultura/linguajaponesa.html